Valéry
Devotado à busca metódica do processo, desvinculando-se da "idéia de acabar" (T. S. Eliot criticou Paul Valéry por estar "profundamente preocupado com o problema do processo, de como é feito o poema, mas não com a questão de como é relacionado ao resto da vida"), o poeta francês encontrou em Stéphane Mallarmé, quase 30 anos mais velho, o modelo extremado de experimentação com o texto poético. E decretou: "Mallarmé compreendeu a linguagem como se ele a tivesse inventado". No ensaio "Mallarmé segundo Valéry" - reproduzido de A metáfora crítica (1974) - João Alexandre Barbosa faz a análise da relação fascinante entre mestre e discípulo, aparentemente invertida: pois o mestre teria produzido a obra inovadora (a exemplo de "Um lance de dados", que rompeu com a tradição do verso), enquanto o discípulo permaneceu atrelado à forma clássica, racionalizando somente no ensaio o vigor e as implicações que haviam sido demonstradas naquela poesia.
Na obra poética, portanto, Paul Valéry é o discípulo ultrapassado - provavelmente porque, como artista, não ousava comprometer-se com o processo de recusas e a imposição de limites entre o silêncio e a autodestruição. Permaneceu lúcido, inteligente e clássico. Mas não para todos: é conhecida a opinião de Edmund Wilson, em
O castelo de Axel (1931), de que os ensaios de Paul Valéry não trazem "uma grande riqueza de idéias", apenas "a representação de uma situação intelectual, e não o desenvolvimento de uma linha de pensamento". Nessa percepção, o rigor artístico proclamado pelo poeta e filósofo surge "graças a alguns procedimentos estilísticos,
e não a uma qualidade da sua lógica". Superdiletante e esnobe,
Paul Valéry não teria contribuído para avançar os estudos de filosofia da linguagem, mas favorecido "uma espécie de misticismo estético" capaz de ser aplicada somente a Stéphane Mallarmé e a alguns simbolistas, incluindo-se o próprio Paul Valéry.
No caso de A comédia intelectual de Paul Valéry, porém, a safra é excepcional: o livro deve ser mesmo a melhor introdução às obras e às idéias do poeta ao alcance do leitor brasileiro. Nele se demonstra, por exemplo, que Paul Valéry, durante décadas, sonhou em conceber uma "comédia intelectual", com Leonardo da Vinci no papel principal, consagrando-a "às aventuras e às paixões da inteligência" e aproximando-a em importância da Divina comédia e d'A comédia humana. Segundo o poeta, "seria uma comédia do intelecto, o drama das existências dedicadas a compreender e a criar".
Projeto jamais realizado e de caráter soberbamente elitista, pois nele estaria exposta a humanidade em "tudo o que a eleva um pouco acima das condições animais monótonas", graças à "existência de um número restrito de indivíduos, aos quais devemos o que pensar, como devemos aos operários o que viver". Consensualmente, um dos personagens imaginários dessa comédia intelectual seria monsieur Teste, marcante por seu rigor intelectual e por seu distanciamento social, que João Cabral de Melo Neto assim preferiu registrar num poema: "Uma lucidez que tudo via, / como se à luz ou se de dia; / (...) porém luz de uma tal lucidez / que mente que tudo podeis".
(Publicado no Jornal do Brasil, fevereiro 2008)
A COMÉDIA INTELECTUAL DE PAUL VALÉRY
Crítica e Teoria Literária, 160 páginas 2007
Autor: João Alexandre Barbosa
Editora: Iluminuras – São Paulo SP
ISBN: 978-85-7321-253-2