Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha
Foi preciso esperar 112 anos para ver editado em Portugal o romance que fez de Adolfo Caminha (1867-1897) o fundador do homoerotismo brasileiro em literatura. Falo de Bom-Crioulo, publicado em 1895, e motivo de controvérsia durante quase todo o século XX. Quando o livro saiu, Caminha não era já oficial da Marinha, pois fora obrigado a demitir-se em 1889 na sequência de envolvimento amoroso com uma mulher que abandonou o marido por sua causa. Isso não impediu um sentimento de repúdio generalizado, que durou décadas, e nunca ficou resolvido. Com efeito, em 1937, a Armada solicitou e obteve do presidente Getúlio Vargas o embargo de novas edições.
Não custa admitir que, em 1895, a história passional de Aleixo e Amaro causasse tumulto. Como é que um representante da boa sociedade se permitia descrever as práticas amorosas de um grumete adolescente, branco e louro, com um marinheiro negro?
Ninguém poupou Caminha, que nos anos 1940 e 1950 era insultado na imprensa brasileira com insinuações soezes de que sabia do que falava... pois também ele fora grumete. Nos anos 1960, ainda a generalidade da crítica descrevia o livro como “abjecto”. Só em 1982, quando a edição americana de Bom-Crioulo correu mundo, e vários especialistas reconheceram tratar-se do primeiro romance, em qualquer país, a abordar o amor homossexual de forma directa, a situação começou a mudar.
Mesmo assim, em 1983, quando o livro foi reeditado, um crítico tão importante como Leo Gilson Ribeiro, escrevendo compreensivamente sobre a obra, viu a recensão embargada por decisão do proprietário do jornal. Porém, graças à difusão planetária da tradução de Edward Lacey, Bom-Crioulo acedeu ao patamar dos clássicos. No prefácio que escreveu para The Black Man and the Cabin Boy, Lacey comparou a obra ao Frankenstein de Mary Shelley e às Afinidades Electivas de Goethe. Três anos mais tarde, Bom-Crioulo estava de volta às livrarias e bibliotecas brasileiras, sendo hoje matéria curricular nos departamentos de queer studies. Adolfo Caminha, que morreu aos 29 anos, não podia adivinhar a amplitude de tais ondas de choque.
Há muito editado em inúmeros países, entre eles o Reino Unido, a Alemanha, a França e o México, Bom-Crioulo chega à edição portuguesa num tempo em que a representação literária da homossexualidade passa por lugar-comum. Verdade que Caminha não usa o grafismo descritivo que caracteriza a ficção homossexual pós-1969, a chamada literatura gay. Autor de romances naturalistas, Caminha fala da "exuberante nudez [das] formas roliças" do grumete Aleixo, razão mais do que suficiente para que Amaro (o Bom-Crioulo) fizesse dele "um escravo, uma mulher à-toa propondo quanta extravagância lhe vinha à imaginação", sem se contentar "em possuí-lo a qualquer hora do dia ou da noite". Passa-se isto no navio, mas também num quarto da Rua da Misericórdia, alugado a uma portuguesa: "Em terra, no quarto da Misericórdia, nem se falava! — ouro sobre azul. Ficavam em ceroulas, ele e o negro, espojavam-se à vontade na velha cama de lona, muito fresca pelo calor, a garrafa de aguardente ali perto, sozinhos, numa independência absoluta...".
A intriga reflecte bem a vida a bordo: um dia, Amaro, o negro, é punido com 150 chibatadas por ter defendido Aleixo, o amante louro, numa briga. Amaro cobrará a dívida no momento em que descobre que Aleixo andava “amigado” com a estalajadeira portuguesa. O efebo é assassinado na rua, frente à multidão que crescia, "procurando lugar, empurrando, abrindo caminho, precipitando-se, formando um grande círculo de gente ao redor dos dois marinheiros, invisíveis agora." À questão homossexual, espécie de reservatório negativo da normatividade, Caminha acrescenta o item sempre melindroso da discriminação racial. Era muita coisa junta em 1895. E continuou a ser dose de cavalo quase cem anos passados.
Bastante cuidada, a edição portuguesa teria ganho em incluir uma introdução que fizesse o historial da recepção crítica da obra entre 1895 e a actualidade. Refira-se, a fechar, que o mais importante dicionário de literatura, teoria e crítica literária que se publica em Portugal, a Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, ainda descreve Bom-Crioulo como uma "novela que relata com vivacidade e crueza a vida dos homens do mar" (cf. 1º vol., 1995), o que não deixa de reflectir uma peculiar noção do que é a marinhagem.
(Texto publicado por Eduardo Pitta no blog Da Literatura, Portugal, em 06.03.08)