Um quarto que seja seu
Eduardo Pitta
Assim que deixou o Mount Holyoke Female Seminar, onde concluiu a sua formação, Emily Dickinson pôde permitir-se ficar fechada em casa a escrever poemas. O resultado foi que escreveu para cima de dois mil. Afinal de contas, na Nova Inglaterra dos anos 1840-50, as meninas de boas famílias não andavam propriamente a abrir. E é muito provável que o envolvimento com Charles Wadsworth, um padre jovem, casado e com filhos, tenha sido uma resposta ao calvinismo ortodoxo do pai, um influente advogado e político de Amherst, cioso dos valores da família. Fosse como fosse, Emily isolou-se por opção. No quarto só mesmo Helen Hunt Jackson, antiga companheira dos bancos de escola e, sim, também isso em que possam conjecturar. Se leram Mercy Philbrick's Choise, o romance que Helen publicou em 1876, ficam a saber que a protagonista não é outra senão Emily.
Hoje, nenhum escritor tem um quarto que seja seu. Meia dúzia tem suite cativa nas praças-fortes da edição, Nova Iorque, Londres e Frankfurt, e esses não fazem a coisa por menos que o Lowell da rua 63, a Cliveden Town House de Cadogan Garden ou o Hessischer Hof da Friedrich Ebert Anlage, moradas em conformidade com o box-office e a agenda mediática. Digamos que é o patamar Bernard-Henri Lévy. Luxo sem culpa, à francesa.
Do outro lado do espelho, o indisfarçável tédio dos pequenos-almoços de Susan Sontag no quarto apainelado do Gritti, em Veneza, tal como a Leibovitz o imortalizou, traduz a variante radical toldada pela culpa. Ali perto, mas já em Dorsoduro, Brodsky, quase um nativo da cidade, contentou-se anos a fio com uma pensione acanhada. Bem vistas as coisas, sempre há alguma diferença entre quem é expulso da sua terra sob a acusação de parasitismo social (e foi o que sucedeu com ele, corria o ano de 1972), e a mãe do camp em repouso sabático. Quando ainda havia Muro, a indústria dadétente juntou-os na Bienal da Dissidência. Ela no Gritti, prolongando uma genealogia iniciada por Ruskin, ele no Londra Palace, quem sabe se no quarto onde Tchaikovsky compôs a Quarta Sinfonia. Então, numa tarde de Novembro, mandaram a guerra fria às urtigas, indo juntos ao sestiere Salute visitar Olga Rudge, a viúva de Pound. Para mal de ambos, o serão foi um fiasco.
O tempo em que a literatura era uma coutada de iluminados, como foi ainda o da Dickinson, acabou. A era dos extremos inventou e largamente subsidiou o autor de causas, como ilustrado por Malraux, Neruda ou Spender. O francês por duas vezes foi ministro: primeiro da Informação (ah bon?), mais tarde dos Assuntos Culturais. O chileno vingou os anos de Temuco no dia em que o Nobel foi parar às suas mãos. O inglês, como era expectável, morreu Sir. Contra o figurino e a disciplina do compromisso, Sontag e Brodsky quiseram-se déracinés. Em todo o caso, o que fica da literatura não é a dieta de ostras e champanhe da baronesa von Blixen-Finecke, mas os livros que assinou como Isak Dinesen depois de deixar o marido e o Quénia. Nos anos 1930-40, a Toscana e o sul da França tinham uma elevada quota de escritores (ingleses e americanos) residentes porque ali podiam construir uma obra longe da pressão do quotidiano. Pouco propensa à viagem, Virginia Woolf fez de Richmond a sua Villefranche-sur-Mer. E Cardoso Pires refugiava-se no cottage da Caparica. A lista não tem fim.
A seguir vieram os assalariados e, na enxurrada, o autor novo. Foi o mercado que inventou o autor novo, aquele que não tem passado, o que faz dele um homem sem memória. No Cabo Espichel como em Vaiaku, o autor novo anda sempre com o tempo universal coordenado. O romance que fez dele um ícone tem inscrita a frase primitiva — Ele viu a gaja —, e essa frase brutal, vertida em todas as línguas (excepto em urdu), objecto de seminários nas universidades da Ivy League, e também na Beira Interior, obriga-o a explicar o rizoma da gaja ao arrepio do fuso horário. À distância, porém atento, o agente põe a correr nos mentideros o rumor de uma edição anotada em escalabitano. Espremido entre dois aviões, o autor novo sente chegada a sua hora.
Eduardo Pitta, publicado no blog Da Literatura