Sábado, 11.02.12

O que cada vez mais se parece

Tempos difíceis

 

João Ventura

 

Por estes dias, celebram-se 200 anos do nascimento de Charles Dickens, e o mundo fora dos livros, desgraçadamente, vai-se parecendo, cada vez mais, com o mesmo mundo que ele retratou em romances como David Copperfield, Oliver Twist,

 

Tempos Difíceis ou História de Duas Cidades, que contribuíram para a minha formação literária e de algum modo, ajudaram a moldar as minhas convicções políticas. A actualidade da sua obra pode ver-se, por exemplo, no começo de História de Duas Cidades: "Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos; a idade da sabedora, e também da loucura; a época das crenças e da incredulidade; a era da luz e das trevas; a primavera da esperança e o inverno do desespero".

 

Em Tempos Difíceis, Dickens, critica com acidez as deploráveis condições de vida dos operários ingleses e o fosso abismal que existia entre a sua vida precária e o fausto obsceno dos ricos da Inglaterra vitoriana. Nestes tempos difíceis de crise que assola a Europa, com os impostos a aumentar e os salários a diminuir, com o desemprego a disparar para números impossíveis, com sucessivos cortes nas prestações sociais dos estados, enfim, com cada vez mais amplos sectores das populações a empobrecer, e com a Grécia, seguida de Portugal - onde, de acordo, com números do Eurostat, mais de 2.500 milhões de pessoas sobrevivem em estado de pobreza e de exclusão social - e de outros países europeus, caminhando à beira do abismo para onde os sucessivos desgovernos e os especuladores financeiros nos vão empurrando, impossível não nos assombrarmos ao constatar como este romance publicado em 1854 descreve a realidade actual.

 

É que a obscena desigualdade entre os miseráveis lares proletários, retratados por Dickens na sua frieza, obscuridade e pobreza extremas, e as luxuosas mansões dos capitalistas da época que tratavam os seus assalariados como bestas de carga, parece reproduzir-se nestes nossos tempos difíceis em que que aos magros salários de muitos se contrapõem aos altos salários de uns tantos gestores transitados da política para as empresas e para os bancos. A única diferença entre os privilegiados dos tempos difíceis de Dickens e os privilegiados de agora, é que os de antes se chamavam utilitaristas e os de hoje são neo-liberais, e que uns se reviam em Stuart Miller e os outros revêm-se em Milton Friedman.

 


Vale a pena recordar um acontecimento catastrófico vivido por Dickens, num início de Verão de 1865, quando viu despenhar-se num precipício sete carruagens do comboio em que viajava. Premonitória metáfora de uma Europa, primeiro a Grécia, depois a Irlanda e Portugal e logo as restantes carruagens deste comboio europeu - sem maquinista mas com maquinadores - que hoje vai descarrilando arriscando uma queda sem fim no abismo que se abre sob o seu gasto e destravado rodado metálico.

 

Talvez seja, ainda, possível evitar a queda se os maquinadores que nos conduzem para a catástrofe forem capazes de imitar o mesquinho senhor Scrooge de Um conto de Natal, que ao ver o futuro sombrio anunciado pelos espíritos do Passado, do Presente e do Futuro, onde podia ver-se um túmulo com o seu epitáfio e nenhuma flor flor, soube redimir-se a tempo e converter-se num homem generoso. Uma parábola, afinal, que a senhora Merkel deveria recordar se quiser, ainda, ter remissão.

 

João Ventura - Publicado no blog O que cai dos dias 

publicado por ardotempo às 22:59 | Comentar | Adicionar
Segunda-feira, 22.08.11

A memória de um fato

O dia da rua

 

No dia da inauguração da placa da rua, o escritor, comovido, estava na cidade entre os seus familiares e muitos de seus amigos. Escutou o texto de uma carta, ouviu os discursos, concedeu autógrafos e falou de improviso. Como sempre falou de maneira original e de forma emocionalmente potente. Intelectual e corajosamente potente. Falou de liberdade e da importância dos negros e do legado dos negros na construção daquela magnífica cidade, preservada e tombada pelo patrimônio histórico. Falou do resgate de uma honra ainda a ser realizado e de sua necessária urgência.

 

O escritor caminhou, feliz e reconhecido, com seus familiares e amigos e autoridades e conterrâneos daquela cidade até o local da rua, enfrentando o vento gelado que surrupiava mantas, boinas, bonés e chapéus. Estava muito frio mas havia algum sol desenhando duramente os volumes do casario e da esquina. Emoldurando o sol brilhante, estavam também as volumosas nuvens escuras, que eram carregadas pelo vento na direção do norte, ao centro do país. Na esquina, além da mureta branca e do cais estava o rio, caudaloso, arisco e cinzento. Do outro lado da ponte, a outra cidade, o outro país.

 

Disseram e o escritor estivera lá no outro lado do rio veloz, alguns minutos antes e fora a testemunha invonluntária do fato narrado. Disseram que caíra uma chuva levissima, dançarina, de pequenos flocos de gelo. Naquela tarde inesquecível, gelada, ensolarada e de ventania imprudente, nevou por alguns instantes em Río Branco.

 

Naquele final de tarde tão frio foram lançados dois livros do escritor, Contos de Verdades e Uma terra só. Tudo isso foi verdade e porque a terra é uma só, o escritor anotou que, precisamente naquele dia da rua e dos livros, nevara em Jaguarão.

 

 

 


 


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Segunda-feira, 06.09.10

Memória secreta

El Padul

 

 

 

 

 

Geri Garcia é um grande artista, desenhista e pintor.

 

Com formação acadêmica na École de Beaux-Arts, de Paris e na Académie Julien, França, entre 1951 e 1953. Em 1953 seguiu para a Espanha, para habitar pelo período de três anos, o povoado de origem de sua família, El Padul, nos arredores de Granada, nos contrafortes da Sierra Nevada, abaixo da montanha El Manal.

 

Ali permaneceu desenhando e pintando as pessoas, os animais, a paisagem. Escutou atentamente a memória oral de seus parentes e dos habitantes do local acerca do terror franquista instalado na região, que dizimou grande número de republicanos.

 

Das viúvas, das crianças do povoado e dos poucos sobreviventes homens, ouviu os relatos das dificuldades, das esperanças e da miséria a que todos foram submetidos pela opressão e por uma guerra impiedosa de motivações políticas.

 

Guardou consigo na forma da arte, os relatos sombrios dos fuzilamentos nas madrugadas andaluzas, que todos tiveram que testemunhar ao serem obrigados a recolher os corpos nos dias seguintes, situação emblemática no legado da memória de um habitante da região (de Fuentevaqueros), o poeta Federico Garcia Lorca, igualmente vítima dessa inesquecível tragédia.

 

Desses relatos pungentes e graves, dos murmúrios de vozes ocultas e da delicadeza poética dessa memória preservada, extraiu um conjunto de desenhos e pinturas que jamais foi visto anteriormente. A mostra inédita de 1953, em aguadas, realizadas a pena caligráfica, em pincel a tinta china e a lápis, um tesouro que podemos apreciar hoje, com emoção.

 

Desenhos que permaneceram secretos e silenciosos por quase 60 anos e que são apresentados agora no conjunto desta mostra de pinturas e desenhos Expressões Misturadas. Geri produziu esses desenhos e pinturas durante aquele período de três anos, guardou-os até os dias de hoje e somente agora concordou em mostrá-los a um público apreciador de arte.

 

São memórias sutis, sussurradas como a névoa alaranjada do deserto que recobre e marca, vez por outra, o branco eterno dos picos da serra de El Padul; trabalhos delicados de viés expressionista, aqui e ali com um toque algo cubista, descompromissados com escolas ou modismos, um documento precioso deste recolhimento recatado de palavras que se tornaram perenes e emuladoras do sagrado, no traço do artista.

 

Alfredo Aquino - Artista plástico e curador da mostra Expressões Misturadas

 

 

 

 

 

 

 

Desenho de Geri Garcia - Tio Antonio colhendo batatas - Desenho a tinta china e aguadas, a pincel e pena caligráfica - El Padul, 1953

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Quinta-feira, 29.04.10

Mitos do século passado

O beijo

 

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Quarta-feira, 09.09.09

O silêncio

Querido Chet
 
Enrique Vila-Matas
 
Hemos llegado a ese momento de la noche en que nos queda poco tiempo, así que les rogaría que se hiciera el silencio
(Chet Baker)
 
 
 
 
Crece vertiginosamente la leyenda de Chet Baker. Yo, que llevaba años haciéndome con todo lo que encontraba de Chet, veo que ahora aparecen multitud de cosas sobre él, se ha convertido de repente en un mito. Y es asombroso, pero hasta los que fueron sus más enconados enemigos, hasta los que le mataron, hablan bien ahora de Chet. A su reputación le está sucediendo exactamente lo mismo que le pasara a la de Rimbaud y Verlaine, que Cernuda comentó en su poema Birds in the night: "Entonces hasta la negra prostituta tenía derecho de insultarles; / Hoy, como el tiempo ha pasado (...) Francia usa de ambos nombres y ambas obras / Para mayor gloria de Francia y de su arte lógico".
 
A Chet le gustaban con delirio las mujeres, el jazz y el chute. Como a aquel pobre Pacífico Ricaport de un poema de Gil de Biedma, le habían echado a patadas de todos los cuartos de hotel. Pero hoy Chet es un mito, una leyenda, todos coinciden en que la esencia de su vida era un caos incesante atravesado por el genio en estado puro. Se habla de la esencia de su vida, pero se olvida que le hicieron la vida imposible en las salas de jazz cool de la Costa Oeste, y también en Nueva York, y ya no se recuerda que el genio de la trompeta tuvo que ir a tocar a tugurios de Europa donde, convertido en una arruga andante, seguía manejando la trompeta con un virtuosismo y originalidad insuperables. Se le recuerda, sí, pero con la visión deformada de Hollywood, que prepara una gran superproducción sobre su vida y ha pensado -¡Dios nos ampare!- en Leo DiCaprio para que interprete a Chet.
 
Ayer decidí dedicarle un modesto acto de desagravio. Me compré un panamá -hacía años que quería y no me atrevía a comprarme ese sombrero- y bajé a La Rambla. Al pasar por Canaletas pensé que, digan lo que digan, hay belleza en el paisaje urbano. Luego se lo dije en silencio a Chet, que fue un gran héroe urbano, uno de esos raros seres admirables que saben que hay que jugarse la vida a cada momento porque sino ésta carece de sentido. La vida es como un buen poema: corre siempre el riesgo de carecer de sentido, pero nada sería sin ese riesgo. Pensé en esto y seguí bajando por La Rambla, admirando la belleza urbana. Me dije que también la vida en el campo es estupenda, hay animales que no se ven en las ciudades, se hace fuego en las chimeneas, pero el campo tiene una belleza soporífera. La ciudad, en cambio, es la poesía misma. Un poeta de Nueva York, un amigo de Paul Auster, escribió estos versos sobre la belleza urbana: "Esta brumosa mañana de invierno/ no desprecies la joya verde entre las ramas/ sólo porque es la luz del semáforo".
 
Cerca de la plaza Real, quedé de pronto extasiado ante la luz esmeralda de un semáforo y evoqué las memorias de Chet (Como si tuviera alas, Mondadori 1999), ese libro irregular, pero escrito con la sangre del jazz y que tiene un epílogo barcelonés: "Después de París, Barcelona casi parecía una ciudad tropical, estaba espléndida en diciembre del 63. Cerré un trato para trabajar en un club que estaba en un sótano, y que llevaba sólo un año ofreciendo música de jazz. En la planta baja bailaba Antonio Gades con acompañamiento de guitarra, castañuelas y palmas...".
 
Naturalmente, el club que estaba en un sótano era el Jamboree. Mis amigos saben la envidia que me dan los amigos que dicen haber visto actuar a Chet en mi ciudad. Tengo a Chet tan mitificado que veo como sueños sus recuerdos. Naturalmente, fui ayer hasta el Jamboree y ante ese local me saqué el sombrero, mi modesto homenaje al gran Chet. Después, evoqué su extraña muerte: cayó al vacío en un hotel de Ámsterdam, cuya fachada estaba escalando en el momento de perder pie, la estaba escalando porque había olvidado su trompeta en la tercera planta y quería recuperarla, pero sin pasar por recepción porque acababan de expulsarle del hotel.
 
Me saqué el sombrero en riguroso silencio recordando lo que Michel Graillier, el pianista que le acompañó en sus últimos días, decía de la música de Chet y que a mí me recuerda a La música callada del toreo, el libro de Pepe Bergamín sobre Rafael de Paula: "Chet tenía el sentido del silencio, que es la materia prima del músico. Se acercaba al micrófono, dejaba pasar cuatro, ocho compases, y desde el mismo momento en que atacaba la nota, ésta alcanzaba toda su plenitud (...). Conseguía una escucha profunda del público porque daba toda la significación musical al silencio antes de empezar su solo".
 
Después, me fui con la música callada de mi homenaje a otra parte, me fui alegre recordando un recuerdo feliz de Chet, el del día en que conoció a una rubia guapísima que estaba sentada a la barra de un bar y que se convertiría en su mujer: "Se llamaba Charlaine y era la bomba".
 
© Enrique Vila-Matas
publicado por ardotempo às 17:03 | Comentar | Adicionar
Segunda-feira, 05.05.08

Aforismo Borgesiano - 18

Memória
















Nosso passado não é o que se pode registrar numa biografia,
nosso passado é a nossa memória.
Pode ser uma memória latente ou cheia de equívocos mas isso não importa: ali está.

©Jorge Luis Borges / Borges Verbal, Emecê Editores – Buenos Aires  Argentina
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Memória dos gestos, futuros.

Memória


                         


Leonard Cohen canta The Future. Veja aqui    
                    
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Domingo, 27.04.08

José Saramago

Exposição




















A Consistência dos Sonhos, exposição de documentos originais, manuscritos, apontamentos, anotações, livros e imagens da memória, do escritor José Saramago
- na Galeria de Pintura do Rei D. Luis, no Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa. 

Veja aqui

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Quinta-feira, 10.04.08

OS ALEMÃO - 3






Hier sprechen wir Brasilianischen


                 


O pai de meu pai viera para o Brasil num navio da Hamburg-Amerika Linie, em 1888, para instalar sobre um trapiche, às margens do arroio São Lourenço e a poucas quadras da Lagoa dos Patos, uma Exporthäusern für Kolonialprodukte, quem sabe um estaleiro, quem sabe uma empresa de navegação.

Imagino que trazia uma roupa preta e o cavanhaque aparado – como nos retratos em que o conheci – além de bastante dinheiro para ele mesmo buscar seu “lugar ao sol”, em vez de servir ao Kaiser e garantir a expansão colonial alemã.

Vovô morreu moço, aos 5l anos, depois de uma ponta de lápis lhe penetrar na virilha, numa queda, e apesar de ser levado às pressas para Pelotas, em busca de socorro.

Era o fim da I Guerra Mundial e ele deixava para cada filho um barco de carga e, para toda a gente, a lembrança de uma seriedade casmurra que só escondia, nos olhos líquidos, a risonha zombaria com que se revelava um alemão incapaz de plantar batatas, incapaz de usar tamancos, incapaz de dirigir uma wagenkollonen – mas capaz de tomar banho todos os dias (e que propalava com letra gótica em sua porta:

HIER SPRECHEN WIR BRASILIANISCHEN).

Vovó Anna havia anotado na última página de seu Gesangbuch (editado em Sttetin, em pomerano), o nome e a data de nascimento de cada filho. A letra é boa, mas a tinta está apagada. 

Leio: Karl Ern..... Leonard, 24/3/1893; Emil Klaus Joa.... , 28/7/1895; Wilhelm Konrad Joseph, 25/../1897; Gustav Ferdinand Otto, 2/../1899; August Friedrich Michael, 5/l/1907.

Esses cinco, quando estava terminando a I Guerra Mundial já eram
 
Carlos

Emílio
Guilherme
,
Gustavo
e
Augusto
, meu pai.
Tinham casado com brasileiras (dois deles com castelhanas de Jaguarão); tinham levado para a fronteira as primeiras indústrias, o comércio de exportação e importação, a prestação de serviços e as primeiras granjas de arroz; tinham vivido com gosto e arrebatamento cada instante de sua multíplice e fascinante aventura.


                  


Seus iates – o Portimão, o Protetor, o São Domingos, o Aníbal I, o Aníbal II (cuja âncora guardo amorosamente como relíquia e prova de um inacreditável e irrecobrável tempo de prodígios) – foram apenas começo e fim de tudo: foram rolos de fumaça se erguendo lentamente, e inexoravelmente se perdendo no ar – no retrato de vovô com seu cachimbo de porcelana e seu transcendente intento bávaro de Shiffen mit Dampf; ou lá longe, na última curva do rio atravessado pela ponte cinzenta e pelos trens insaciáveis. 

Seus iates navegaram por toda a região da Lagoa dos Patos e da Lagoa Mirim, arribando a portos estabelecidos ou estabelecendo atracadouros novos, cada qual com suas cargas de ilusões e seu mestre, seu motorista, seu marinheiro, seu moço de convés e seu cozinheiro, exatamente como haviam feito no Rio dos Sinos, no Jacui, no Caí, no Taquari, os barcos de outros alemães – Blauth, Becker, Michaelsen, Schilling, Arnt. Mas tudo acabou como um sonho que se desvanece.


                     



– continua                                              Os Alemão - Sequência  01  02  03  04

© Aldyr Garcia Schlee
Imagens ©Coleção Azevedo Moura e AGS
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OS ALEMÃO - 2




 


Os velhos levados presos por não falarem português


D
epois das férias, retornei a Jaguarão, onde havia nascido, onde estudava e onde morava com minha vó materna, a um passo do Uruguai. Não sei se cheguei a ter vontade de contar tudo, tudo o que eu tinha visto e feito; mas, por qualquer razão que na época não poderia adivinhar, acabei guardando tristemente comigo, em dificultoso segredo, cada alegria, cada descoberta, cada novidade de Santa Cruz.

                                  

Talvez achasse que não acreditariam em mim, talvez não quisesse me intrometer em assunto de gente grande.  De modo que nunca revelei nada, mesmo que fosse sobre as bolachinhas de mil formas, os bichinhos de marzipã e a ávore de Natal enfeitada com maçãs de verdade; eu nunca confessei palavra sobre os velhos levados presos rua afora ou os cânticos natalinos ou o bolo de chocolate de vovó Anna – eu, que ninguém sabia que havia viajado num  automóvel sobre trilhos, dormido em acolchoados  de pena de ganso e morado dentro de uma fábrica de balas!...

Em Jaguarão, os dois primeiros alemães que apareceram foram um fotógrafo e um dentista, prático licenciado. Depois, com seus barcos a vapor, com seus ternos elegantes e com suas manias de grandeza que acendiam de inveja os fazendeiros locais, chegaram meu pai e seus irmãos, trazendo rio acima cimento e ferro para a grande ponte, trilhos e dormentes para a ferrovia; as quais haveriam de unir Brasil e Uruguai e de marcar o início do longo e agoniado declínio da navegação fluvial e lacustre.


                


Eu ainda não era nascido, mas me lembro bem, porque está num conto meu.

Desde que chegaram os homens, desde que se abriram as picadas, desde que vieram os dormentes e trilhos as coisas foram mudando demais. Eram gentes de pêlo variado, de modos estranhos, de toda a laia e para todo o gasto; eram medidas e escavações, picaretas e pás, campo rasgado e mato derrubado; eram toras pesadas enchendo os iates, eram aquelas talas de ferro luzindo e depois enferrujando, enferrujando...


               


Foi o verão mais quente que já se teve; e foi o dia mais quente de todos os verões, aquele 1º de janeiro de l93l da inauguração da ponte: as pessoas debruçadas na amurada, olhando o rio bem de cima; a água limpa da estiagem passando em desordenados redemoinhos; embaixo, barcos enfeitados, as chatas, os iates que haviam carregado ferro e cimento, cimento e ferro, cimento e ferro, meses a fio, para a construção; e, bem embaixo, na sombra sob as alfândegas, o mormaço, a umidade, o entulho, o cheiro de bosta fresca...


                 



– continua                                                  Os Alemão - Sequência  01  02  03  04

© Aldyr Garcia Schlee
Imagens ©Coleção Azevedo Moura e AGS
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Quarta-feira, 09.04.08

OS ALEMÃO - 1




 

Aldyr Garcia Schlee


Stille Nacht, Heilige Nacht!


                        
            
N
a véspera do Natal de 1943, voltei a Santa Cruz do Sul numa viagem inesquecível: primeiro, de avião até Porto Alegre; depois, de trem até Ramiz Galvão – e, por fim, num carro-de-linha Ford Modelo T que varou a escuridão e o silêncio da noite sobre trilhos iluminados de vertiginosa magia, como para me deixar gloriosamente diante da árvore em torno da qual se cantava o Tannenbaum.

Stille Nacht, Heilige Nacht! 

O pinheirinho estava enfeitado com maçãs!


Vovó Anna era gorda, tinha uma grande cama com acolchoados de pena de ganso e fizera bolachinhas de mil formas – estrelas, corações, anjos, flores, sereias – além de bichinhos de marzipã – pássaros, ovelhas, galos, patos, cachorros...

Eu estava com nove anos, deslumbrado diante das maçãs de verdade na árvore de mentira, e ainda a sentir o inacreditável trepidar do fordeco sobre os trilhos brilhantes. Aquele dia fora tão fantástico, tão surpreendente e extraordinário, que tudo acontecia além do pretendido e esperado, além do que eu julgara possível e desejado em meus sonhos infantis de dirigíveis e aeroplanos, de soldados e bandidos, de comboios varrendo as telas do cinema, sem qualquer inimaginável automóvel sobre trilhos.

De modo que naquele dia eu não tinha ainda idade, eu não tivera ao menos tempo, eu não teria nem mesmo querer para descobrir algo além dos cânticos natalinos, das maçãs e da árvore, dos acolchoados de penas, dos bichinhos de marzipã, das sereias, das flores, dos anjos, dos corações e das estrelas – e do bolo de chocolate sobre o qual vovó havia escrito Sacher.

Meu pai, minha mãe, meus irmãos, minha avó, nós morávamos numa fábrica de balas, na Avenida Independência, nº 100. Era uma maravilha de perfumes e de cores, os caramelos assim enormes em grossos rolos se afinando se afinando plac plac plac cortados cortadinhos cortadinhos se amontoando se amontoando montões de caramelos montões de caramelos coloridos... Até que um dia eu vi; eu estava sentado feliz diante de casa com minhas bolachinhas, minhas balas e meus sonhos, quando eu vi; eu vi pelo meio da rua soldados da Brigada, eu vi os soldados levando por diante quatro ou cinco velhos, eu vi os velhos presos a uma corda, um atrás do outro.

Não me lembro da cara daqueles velhos, de seus olhares perdidos, de seus gestos de desamparo, de seus chinelos vacilantes. Nem me lembro se corri para dentro, se chorei de susto e se me explicaram por que se prendia a gente, porque se arrastava a gente pela rua.

Só me lembro que naquele dia, deitado com meus sonhos, minhas balas e minhas bolachinhas nos acolchoados de penas de ganso de vovó Anna, eu me abracei fortemente nela, bem apertado, soluçando e tremendo muito, tremendo de medo, engasgado de medo.


                                             


– continua                                                   Os Alemão - Sequência  01  02  03  04

© Aldyr Garcia Schlee
Imagens ©Coleção Azevedo Moura
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Aldyr Schlee escreve

Aldyr Schlee, o grande escritor do Sul, das Américas, de vivências incomuns e densas histórias pessoais, enviou um texto esplêndido, uma espécie de relato emotivo biográfico que dá conta das histórias de uns alemães imigrantes que construíram suas vidas, suas famílias e uma legenda de boa memória, pelas lagoas extensas e nas descampadas fronteiras meridionais, as mais afastadas das grandes metrópoles brasileiras.



Um texto em 4 capítulos postados no blog ARdoTempo sob o título de

                 

                             
 
                                 "Pela manhã, têm-se ouro na boca"                                               
publicado por ardotempo às 20:53 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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