Sábado, 14.01.12

Rumo a uma outra estação

A batalha poética de encantar

 

Mariana Ianelli

 

Estreia do gaúcho Pedro Gonzaga na poesia, “A última temporada” prenuncia no título a fina ironia do livro, visível, antes de tudo, no fato de um poeta surgir aos 35 anos para inaugurar um fim. Desde uma juventude que termina, e com ela certa exultação e certa irresponsabilibidade, os poemas de “A última temporada” têm o poder de atravessar esta sutil ironia do título para ir à poesia propriamente dita.

 

Chega, portanto, aonde poucos chamados jovens poetas costumam chegar, a um ponto de suspensão em que a cotidianidade não desencanta o verso. Ao que se perde de uma geração para outra de uma família, ao “misterioso exoesqueleto abandonado” de algumas roupas, à morte de um amigo, o poeta responde com a força de imagens que ficam, com uma fantasia que não se deixa intimidar pela aspereza da verdade de “inquisidores e síndicos”.

 

Se há um imperativo que move o poeta, esse imperativo é “uma ilusão adamantina, não a verdade”, pois “se puderes fechar os olhos para o real/ fecha agora/ não te preocupes,/ antes,/ aproveita/ hão de acordar-te os credores/ a dor no ciático/ o fingimento da mulher que nunca se entrega”.

 

Defender e fazer durar essa ilusão requer nada menos que uma batalha poética, afinal, encantar tanto perdeu valor que “quase já não há mais garotas sentimentais/ e por isso o mundo está perdido/ por isso o mundo só poderá ser salvo/ quando armado de alaúdes/ voltar à provença/ um novo exército de trovadores”. É assim que os poemas de Pedro Gonzaga respondem à cotidianidade com o poder da fantasia. O amor entre dois bêbados de vinho, o erotismo da mulher transmudada em ave mítica, a lembrança de dois corpos jovens tingidos de azul e vermelho sustentam, no poema, um instante fora do tempo. Até mesmo “a macabra fantasia” dos mortos, “de permanecerem iguais/ em nossa memória, participa desse estado poético de suspensão, de encantamento, que não se decompõe como acontece ao efeito da ironia.

 

A batalha poética de “A última temporada” se faz desde dentro da poesia e também à poesia se dirige, à expressão de uma época desencantada que marca presença na estética contemporânea tanto no seu apreço pelo coloquialismo quanto na expressão de uma poesia autorreferente, instilada pela teoria.

 

Em seu “poema em linha torta”, Pedro Gonzaga fala daqueles que “de todos os lados/ armam-se de teses/ (futuristas cansados)”, os que “debatem o fim da lira/ locupletam-se com artigos/ em revistas indexadas”, os que “alegam ser capazes de ler na tela/ 300 páginas mas não vencem uma quadra/ de quevedo”. Já farto “da maçada de lhes dar combate”, o poeta apenas ergue seus versos e os mantém suspensos – porque esta sim é a sua batalha – sem pretender enfrentar o que não seja o próprio alcance da poesia no seu benefício de envolver “num delírio (dolorosamente necessário)” quem dela se aproxima.

 

O teor irônico que sutilmente compõe o livro serve como um reflexo do rosto que o espelho devolve e que o poeta confronta com outra visão, aquela que não envelhece na memória. Mas Pedro Gonzaga não ri apenas de sua nostalgia como ainda ironiza sua condição de poeta num mundo onde o que importa é estar preso ao chão e às coisas chãs: “mais uma vez deliraste/ feito um adolescente/ com a solidão sem par de marco aurélio/ o que não se deixava alegrar/ nem pelo império indiviso/ nem pela admiração renitente dos soldados/ a quem por certo haveria de ferir/ o filho dissoluto/ de que te serve, afinal/ o áspero estoicismo helênico das meditações?/ (...)/ verás que não te aguarda o exílio fatal em capri/ não cunharão teu perfil na face áurea da moeda/ terás meramente o financiamento cancelado/ então veremos até onde vai tua poesia,/ bravo estoico”.

 

Esta autoironia, que não protege o poeta de suas dúvidas nem dos seus limites, inverte o sentido da irreverência. Este homem que antes teve “esperança,/ agora uma azia intermitente”, este que, como “dédalo”, de um dos belos poemas do livro, “ao inventar uma fuga”, inventou “também uma queda”, sabe que já não pode se escudar no humor quando lhe bate à porta a morte de um amigo, a falta de amor, o dia em que terá de “abraçar o corpo frio de seu pai”.

 

De todas essas perdas e incertezas expostas, quando “a orquestra pára/ e um a um os rostos abrem suas pétalas”, desse lugar mais profundo do silêncio aonde o sarcasmo não chega é que a poesia de Pedro Gonzaga se alimenta. O encontro de Ovídio e Napoleão, separados pelos séculos mas unidos pelo destino de “uma queda e uma esperança”, no poema “dois homens em elba”, e o antológico poema “em zama”, que retrata o instante entre a esperança e a queda de Aníbal, sintetizam uma só derrota emblemática, a que dá “palavras/ (suprema humilhação)/ a este precário poeta/ do outro lado do mundo/ desconhecido”. Se a ilusão inconsciente chega à sua última temporada, Pedro Gonzaga tem diante de si a fantasia necessária, este desejo que “seguirá clandestino/ rumo a uma outra estação”.

 

© Mariana Ianelli - Publicado em Prosa&Verso - Jornal O Globo - Rio de Janeiro

publicado por ardotempo às 17:38 | Comentar | Adicionar
Domingo, 01.01.12

Para começar bem o ano

Mariana Ianelli - Entrevista

 

Poesia e mística: o silêncio como origem e destino.

 

Entrevista com Mariana Ianelli - IHU On-Line

 

“O tempo interior, de silêncio, paciência e meditação, tem sido cada vez mais preterido pelo imediatismo, que é a noção de um tempo dessacralizado. A mística e a poesia, contra essa engrenagem perversa, nos fazem lembrar de um amadurecimento lento das coisas, de um vazio para ser preenchido pelo que não é vontade nossa, e do quanto pode o nosso olhar quando atenta para uma leitura da realidade em níveis que transcendem o visível e o material. Porque, antes de tudo, o que a poesia e a mística despertam é a nossa faculdade de atenção”. O convite a essa “profunda disposição para o silêncio” nos é feito pela poeta paulista Mariana Ianelli, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

 

Esse silêncio, derivado de “um estado concentrado de atenção” ao qual somos levados pela poesia e também pela mística, torna-se, assim, “uma abertura, como que uma chave de acesso, para essa via secreta do Mistério, que de outro modo não seria percebida”.

 

O que acontece dentro desse espaço de atenção – afirma Mariana –, na abertura dessa passagem para o que se pode chamar de inefável, é o instante de uma configuração, quando uma verdade se dá a ver em uma figura”. A partir daí, “pensar em uma mística do feminino é também pensar nos mistérios do amor”.

 

Mariana Ianelli é poeta, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, autora dos livros Trajetória de antes (1999), Duas Chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005), Almádena (2007), Treva Alvorada (2010). Colabora para os jornais O Globo, caderno Prosa&Verso (RJ) e Rascunho (PR). Sua página na internet é www.uol.com.br/marianaianelli

 

IHU On-Line – Em sua opinião, como a poesia e a mística colaboram para aguçar a percepção sobre o Mistério? Que vínculos você percebe entre poesia e mística?

 

Mariana Ianelli – O que as torna tão próximas, a poesia e a mística, é uma profunda disposição para o silêncio, o silêncio de um estado concentrado de atenção que, justamente por estar preservado do ruído, encontra uma abertura, como que uma chave de acesso para essa via secreta do Mistério que, de outro modo, não seria percebida. E porque a palavra que vem dessa mirada, tanto poética como mística, não pretende, como faria a ciência, submeter ou reter nela mesma essa realidade mais profunda, sua expressão se dá musicalmente, na forma do canto e da prece, que são formas aladas, por assim dizer, também vinculadas entre si, que têm como origem e destino o silêncio, e são inapreensíveis no registro de uma linguagem instrumental. O que acontece dentro desse espaço de atenção, na abertura dessa passagem para o que se pode chamar de inefável, é o instante de uma configuração, quando uma verdade se dá a ver em uma figura. Os símbolos a que recorrem os poetas e os místicos são uma espécie de receptáculo dessa verdade que, se antes pediu um estado profundo de atenção para ser percebida, agora pedirá a atenção e o coração aberto de um outro que procure ver além da figura.

 

IHU On-Line – Um de seus ensaios está intitulado Por uma Poética do feminino, em que você afirma que “mito, história e corpo cantam quando canta uma mulher”. Como se dá a relação entre poesia e feminilidade?

 

Mariana Ianelli – Penso nos mistérios de Elêusis, nos séculos e séculos em que a mulher esteve obrigada à reclusão doméstica e ao mutismo, e em seu próprio corpo, em sua potência de gerar vida dentro de si, como diferentes marcas do feminino que convergem para essa intimidade com o oculto, com o que se elabora em segredo e tem por metáfora o duplo trabalho de Penélope , que é também sua arte e seu destino, de fiar e desfiar indefinidamente num exercício de esperança e sacrifício. Aí estão as figuras emblemáticas de Marta e Maria em uma só mulher, aquela que ao mesmo tempo comparece em um gesto eficaz diante do mundo, e esta que se guarda no seu olhar contemplativo. Isso, levado para a poesia, encarna a paciente gestação interna de um poema face o ímpeto da escrita, os maravilhosos encadeamentos de um processo intuitivo, às escuras, e a trama que daí se vai constituindo à luz do dia. São as duas respirações de que falava María Zambrano, a da vida e a do ser, esta, oculta no silêncio, que orienta o sentido do poema, engendra musicalidade e é “o hálito do ser depositado sobre as águas primeiras da Vida”, e aquela outra, que está justamente na superfície do viver e que sofre a ameaça de interromper-se não apenas por alguma razão fisiológica, mas sobretudo se falta a respiração do ser, que sustenta em silêncio a respiração da vida.

 

IHU On-Line – Amor, erotismo, segredo, ventre, criação... São diversos os símbolos relacionados ao feminino que fluem entre poesia e mística. A partir de um olhar poético-místico, o que é o feminino?

 

Mariana Ianelli – Vejo o feminino, sob essa perspectiva poética e mística, representado magnificamente na personagem bíblica de Judite. Uma mulher que, diante do cerco à cidade de Betúlia pelo exército de Nabucodonosor, quando os anciãos da cidade se reúnem para estabelecer um prazo para a manifestação de Deus, como se isso fosse possível, coberta de cinzas, faz sua oração mais fervorosa e pede a Deus para ser habitada por três forças: palavra, astúcia e ímpeto. Nessa prece, ela diz: “Tu é que fizeste o passado, / o que acontece agora e o que acontecerá depois. / O presente e o futuro foram estabelecidos por ti, / e o que pensaste aconteceu”. E então ela roga: “dá-me o ímpeto que pensei”, rogando, assim, pelo pensamento divino dentro dela, por um impulso em conformidade com uma vontade superior.

 

Depois da oração, Judite se despoja do seu luto, põe seu vestido de festa, perfuma-se e se adorna com todas as suas joias, enche um odre de vinho, uma bilha de água, um alforje de farinha e com sua serva atravessa os portões da cidade para ir ao encontro de Holofernes, chefe do exército inimigo. Já pelo caminho, Judite vai seduzindo pela sua beleza os soldados que encontra e, ao ter com Holofernes, Judite o seduz também por sua palavra, uma palavra ambígua e profética, que fala de Deus enquanto Holofernes julga que ela fala de Nabucodonosor. É assim que essa mulher permanece infiltrada entre 140 mil homens, durante quatro dias, nos quais, durante a madrugada, dirige-se ao pé da fonte da sua cidade para orar, para beber espiritualmente à fonte do pensamento divino. No quarto dia, quando Holofernes, em um banquete, pretende dormir com Judite, finalmente ela desempenha o gesto, aquele gesto preciso, movido por um ímpeto transcendente, por isso violento, de decapitá-lo com dois golpes de alfanje.

 

Acredito que essa narrativa, de uma mulher que afugenta um exército de milhares com a sedução da sua palavra ambígua, com a astúcia de um caminho que vai sendo urdido subterraneamente, sob o véu da beleza, e com o fervor, um fervor que se nutre da fé, e que transborda para a realidade num golpe mortal, acredito que esse episódio bíblico concentra de maneira emblemática, espiritual e poeticamente, em uma tríade perfeita, toda a potência que existe e está guardada sob a aparente delicadeza do feminino.

 

IHU On-Line – Por outro lado, em sua opinião, podemos também falar de uma “mística feminina” ou de uma “mística do feminino”? Quais seriam as contribuições do olhar feminino à percepção do âmbito místico da existência?

 

Mariana Ianelli – Creio que sim, que podemos pensar em uma mística do feminino sob muitos aspectos, um deles, a partir da visão para qual Maria Madalena é a escolhida, por amor, entre todos os discípulos, tornando-se ela a portadora de uma revelação secreta. Se lembramos das Moradas de Santa Teresa e das Visões de Hadewijch de Antuérpia, vemos o percurso de uma viagem interior, pródiga em figuras, que se vai delineando à vista dessas mulheres místicas e que nos remete ao relato visionário, de Maria Madalena em seu Evangelho, da ascensão da alma através dos céus até o silêncio e o repouso.

 

Não desconsidero com isso os místicos e poetas que também figuraram à sua maneira as jornadas da alma em suas etapas de purificação; apenas destaco a relevância desse vínculo intrínseco entre as viagens espirituais descritas por mulheres místicas e a visão de Maria Madalena, que provém de um conhecimento oculto cuja revelação ela, Maria, por ter sido a escolhida, tem o privilégio de transmitir aos outros homens. A partir daí, pensar em uma mística do feminino é também pensar nos mistérios do amor. Quanto à importância da figura, é inevitável sua relação com a poesia, e aqui vale mencionar a poeta Cristina Campo, que se dedicou a refletir intensamente sobre o valor de uma poesia hieroglífica, que sintetizaria de forma cifrada, na beleza da figura, a exemplo da sarça ardente, não a arbitrariedade da imaginação fantástica mas a verdade do real.

 

IHU On-Line – Na literatura ou na história, quais mulheres mais encarnam essa abertura místico-poética ao Mistério e à Realidade Última, em sua opinião? Por quê?

 

Mariana Ianelli – Cito mulheres que fazem parte do meu cotidiano de leitura, com as quais me identifico, e que transitam por esse espaço de poesia e mística. Cristina Campo, por ter se dedicado a pensar uma poesia que é refúgio do esplendor e que, semelhantemente aos ritos litúrgicos, celebra os mistérios divinos. Cristina Campo escreveu pouco mais de 30 de poemas, e dizia que gostaria de ter escrito menos, tal era o valor da paciência e do segredo que a palavra lhe impunha. No cenário dessacralizado do pós-guerra, Cristina teve a coragem de defender, em seus ensaios e poemas, a beleza, que ela considerava uma secreta virtude teologal e que parecia inadmissível em sua época porque aceitar a beleza, segunda ela, “é sempre aceitar a morte, o fim do velho homem e uma difícil vida nova”.

 

Outra figura marcante é Simone Weil, cuja obra, aliás, Cristina Campo foi uma das primeiras a estudar na Itália, em meados dos anos 1950, e com a qual dialoga em seus escritos. Simone Weil e Cristina Campo compartilham valores fundamentais: a atenção elevada ao grau de prece, a importância de um estado de vigília e a necessidade de amar aquele que está ausente, considerando aí toda a responsabilidade e o sofrimento que uma dedicação como essa implica, além da disciplina para compreender os símbolos através do olhar, uma disciplina que deveria levar a inteligência a se tornar contemplação. Uma poeta cujos textos me deslumbram, justamente porque transcendem os limites do literário, é Alda Merini, com os poemas de A Terra Santa e de Magnificat: Um encontro com Maria. Entre o seu livro de estreia, A presença de Orfeu, e A Terra Santa, Alda Merini passou cerca de vinte anos sem publicar, sete deles internada num hospital psiquiátrico. O que surge depois desse silêncio é uma transubstanciação da poesia em mística, especialmente no caso de Magnificat, um livro em que a autora dá voz à mãe de Cristo como aquela que se torna, ela mesma, a morada da Palavra, simbolizando aí a poesia quando se funde à mística: Maria como aquela que traz a boca unida à boca de Deus e o pensamento criador feito carne. Nesse longo poema que é o Magnificat, Maria é aquela que morre crucificada e ressuscita com o seu filho num “duro grão de amor”. O que alimenta a poesia de Alda Merini é a ancestralidade de um canto originário, que vem da natureza, e o que funda sua poética é o amor.

 

Outra poeta que passou um longo período em silêncio desde a publicação dos seus primeiros textos, e que mais tarde escreve sobre situações marianas, é María Victoria Atencia. Sua relação com a poesia envolve uma inspiração que independe da vontade e o momento subsequente da criação, que exige trabalho, esforço e técnica. María Victoria regressa à poesia depois de quinze anos com o livro Marta e Maria e, dez anos mais tarde, publica Transes de Nossa Senhora, poemas que vão pela mesma via do Mistério que Alda Merini percorreu, que falam do Verbo encarnado, da “prenhez gloriosa” de Maria, a que foi a escolhida e que por isso tem os seus sentidos incendiados. Uma escritora, filósofa e também poeta com quem María Victoria Atencia dialoga e que encarna perfeitamente essa abertura místico-poética é María Zambrano, por tratar dessa aventura iniciática de descida ao fundo do coração, de onde se pode emergir com uma prece ou com um poema que espelha, como obra de criação, o próprio poeta na sua dimensão de criatura. Dos escritos de María Zambrano, as ruínas como lugares simbólicos de ressurreição e esperança, a morte como promessa de amor, a existência de uma palavra que nunca é pronunciada nem humanamente concebida, que permanece oculta e por isso inviolada, abrindo o espaço do silêncio da revelação, são algumas dessas passagens para o Mistério e para o desvelamento do real. Em seu texto sobre São João da Cruz, que é belíssimo, María Zambrano se pergunta que religião é essa, do Monte Carmelo, que honra a Virgem Maria e faz dos seus santos poetas, a exemplo de São João da Cruz e Santa Teresa d’Ávila.

 

Essa pergunta nos leva a pensar em uma mística do feminino sob a perspectiva de Maria como a portadora da palavra encarnada e da sua relação com a poesia, uma relação que justamente inspira os livros de María Victoria Atencia e Alda Merini. Ainda pensando na Ordem do Carmo, temos esta outra mística, Edith Stein, que foi leitora fervorosa de Santa Teresa e uma figura emblemática da história, por ter sido conduzida, na trajetória da sua vida e da sua obra, ao extremo do silêncio interior, do amor e da expiação. Podemos dizer sem erro que Edith Stein encarnou o sentido espiritual do nome de Cristina Campo (cujo verdadeiro nome era Vittoria Guerrini): “a portadora de Cristo nos campos do III Reich”.

 

IHU On-Line – Em um de seus recentes poemas, Pietà, você diz: “Por delicadeza / Devia cada um resolver seu vestígio, / Não deixar o corpo a esmo, / Atravessado na passagem, / Sem desejo, sem enigma”. Como podemos compreender a relação entre o corpo, a nossa materialidade, e a expressão místico-poética pessoal?

 

Mariana Ianelli – Pensando na natureza como uma “metáfora do sobrenatural”, como diz Cristina Campo, o corpo é esse casulo que guarda a alma até ela estar pronta para o voo. É também uma espécie de receptáculo semelhante à palavra. Se há espaço nesse corpo para o que não é vontade própria nem vontade imposta por um outro, se há espaço para uma inexplicável intuição encher esse vaso até o limite, e mais: se pode essa intuição transbordar para a vida, acontece uma inversão na ordem das coisas. Passamos a atuar como que na voz passiva, em vez de mover sentimos como se fôssemos movidos. Essa é uma maneira de realizar que o corpo que dizemos nosso na verdade nos é dado, é a nossa casa e, como toda casa, um dia será abandonado.

 

O fato de irmos perdendo o controle sobre ele, de sermos traídos pela falta de vigor e de memória, por exemplo, isso também é uma lição que a vida impõe, em geral, para nós, a contragosto: de que esse corpo tão íntimo, tão pessoal, não é tudo ao que nos resumimos nem é sempre imediatamente reconhecível como nosso. Temos, materialmente falando, o mesmo destino da Abadia de Tintern que tanto encantou Wordsworth. E deixar esse vestígio para ser recolhido pelos outros é ainda uma lição. O poema continua: “Mas se me fica o teu corpo / Eu te arrepanho nos braços / Com a maternidade do ofício / E lavo os teus ombros / De quanto pesou sobre eles, / O teu sexo, que a nenhum afago responde, / Lavo os teus pés, o ato mais santo. / Eu te arremato, eu te limpo da vida, / Faço com que desapareças, / Que o teu equívoco me abasteça / Da razão dos humildes. / Fardo ensoalhado esse, / De amparar o meu próprio destino”. Porque o vestígio de alguém nos dá a ver a nossa própria morte e saber que vamos nos recolhendo uns aos outros ensina uma certa humildade e também um sentido maior de esperança. Ensina que, depois de um desastre, não importa o quão devastador ele seja, se depois a vida ressurge, então isso é a misericórdia.

 

A observação dessas coisas passa pela vivência, pelo olhar e pela intuição, e a poesia, servindo-se disso, paralelamente à mística, encontra à sua maneira uma via de acesso para leituras da realidade em um nível além imediato, do visível e do material.

 

IHU On-Line – A linguagem mística muitas vezes se manifesta de forma ousada e radical. Como essa gramática e semântica se relaciona com a gramática e a semântica poética? Que relações ou distanciamentos você constata entre essas duas linguagens?

 

Mariana Ianelli – Não existe pudor quando se trata de ir ao mais íntimo da palavra, quando a linguagem ronda o indizível chegando ao extremo de circundar aquilo que já não é palavra. Esse mais além do verbo é o que se guarda e permanece cifrado sob a figura em uma representação simbólica. A forma ousada com que a linguagem mística se expressa se dá pelo arrojo de uma voracidade amorosa, e não somente os símbolos aos quais essa linguagem recorre, mas sobretudo uma unidade na aproximação dos contrários, se relacionam com uma lógica poética, como quando Santa Teresa diz: “Vivo sem viver em mim / E de tão alta vida espero, / Que morro porque não morro”.

 

Desse paradoxo aparente, de um intermédio entre dois mundos, de uma palavra repleta de silêncio e um “contentamento descontente” também se faz a poesia. O enleio de perseguir e ao mesmo tempo ser perseguido é o que alimenta o fogo da linguagem mística numa espécie de rito entre amantes que se aproximam se afastando, num jogo análogo à natureza insaciável desse amor que só se pode consumar em uma outra vida. Aqui, a relação entre corpo e alma se manifesta num elo dos sentidos físicos com os sentidos sobrenaturais e, ao mesmo tempo, em uma tensão da matéria como uma espécie de cárcere que impede a plena conciliação amorosa. Esse fogo, esse hálito primeiro que impulsiona a criação, na linguagem poética, supõe um ponto de partida que é um estado de caos, de matéria informe anterior ao fiat lux da palavra. Nesse lugar intermediário entre o deserto e a vida, nesse espaço genesíaco entre noite e aurora, que remete à pré-história da poesia no seu parentesco com a palavra sagrada, o ato de criar materializa no poema aquela mariposa que devora a prisão do seu casulo para sobrevoar os vales e as montanhas com as asas de um canto.

 

Os distanciamentos que vejo em relação às duas linguagens, tal como os opostos de que ambas se alimentam para consagrar a beleza da unidade, são direções complementares de uma mesma seta, que tanto se lança para o alto como se crava no fundo do coração: a mística se servindo da figura para simbolizar o reino da outra vida neste mundo, ou relatar um itinerário espiritual, e a poesia estabelecendo, a partir da realidade sensível, uma senha mágica para ingressar nessa realidade sobrenatural, nesse instante do inefável.

 

IHU On-Line – Em entrevista à IHU On-Line, Faustino Teixeira afirma que você, em sua poesia, manifesta “a presença de um ‘céu absoluto’ que inspira os mais profundos enigmas. E também a busca de um Deus palpável”. Como você percebe a sua mística pessoal em sua vivência cotidiana e em sua obra de poetisa?

 

Mariana Ianelli – Desde os primeiros poemas já me atraía intuitivamente uma presença do sagrado. Em pelo menos dois poemas do primeiro livro (Trajetória de antes, 1999) posso reconhecer o começo dessa busca, Acalanto para Cassiana e Três vezes Cristo. Cassiana foi uma colega de escola, uma menina linda, que um dia fui obrigada a ver no meio de uma sala, deitada sobre um monte de flores. A morte dessa menina, que tinha a minha idade, me despertou para o sentido de muitas coisas, inclusive da poesia. Nos poemas de Passagens que vieram quatro anos depois, uma releitura poética das Lamentações bíblicas e do Livro de Jó me pôs em contato com esse conflito da fé que se ressente de uma sensação de injustiça diante de uma calamidade. Há também nesse livro um poema que surgiu de um caso particular, quando meu avô sofreu um AVC e durante algum tempo ficou sem identidade.

 

O poema diz assim: “Para honrar tua vontade, festejamos. / Esse amor rente à boca nos ensina / A crer no tempo da eternidade, / Num espaço em que a matéria é luz, enfim, / E onde o temor da morte se destrói. / Atravessamos a época de um verão que faz sofrer, / Uma serpente se levanta entre os cascalhos / E se põe contra quem vem pelo caminho. / Mas somos muitos, somos teus, e aguardamos. / Se coragem há que torne as horas mais tranquilas, / Nós não sabemos, / Apenas contamos com o retorno dos teus olhos / E ao poder da natureza suplicamos / Que recuperes a mesma identidade / Pela qual te reconhecíamos diariamente / Como o soberano autor de tua vida / E não este ser convulso que de nós se afasta / Para vagar numa esfera invernal / De mudez, alienação e indiferença. / Estamos em ti sempre que te ausentas”.

 

O livro que veio a seguir foi Fazer silêncio (2005), e nele o que existe é “uma paragem para ir à fonte”, como diz María Zambrano. E depois de um conflito pessoal inspirado pelo Livro de Jó, depois de realmente perceber a paciência que um poema exige, o que me aconteceu foi uma gratidão, um olhar para esse triunfo da vida, apesar dos desastres. Essa gratidão está em Almádena, um livro que foi escrito com o pensamento no Sermão de Quarta-Feira de Cinzas, de Antônio Vieira. Além de um canto de ofício, ter visto a casa dos meus avós se transformar em uma ruína, ter passado pelo fim de uma geração da minha família, e perceber que a vida continua existindo, absoluta, agora acrescida de todos esses que vão conosco, apesar de já não estarem vivos, isso me impôs uma das tarefas mais difíceis, a tarefa de encontrar vida onde parece não haver mais nada, e de entender que essa vida que surge depois de uma casa arruinada é a própria misericórdia. Simone Weil fala a esse respeito, mas para compreender o significado disso, o livro que precisei ler foi o da vida, e o sentimento de esperança que veio dessa leitura, eu o reconheço agora nos poemas de Treva Alvorada (2010).

 

IHU On-Line – Como mulher e poetisa, em nossa situação contemporânea, qual o papel e o valor da poesia e da mística? Quem seriam as principais místicas-poetisas (ou poetisas-místicas) de hoje, em sua opinião?

 

Mariana Ianelli – Vivemos em uma época de tirania da produtividade, de apologia do que é novo e eficaz e de um aparente benefício de tudo o que nos abrevia o sofrimento, o esforço e uma aprendizagem demorada. As coisas não amadurecem mais no seu próprio tempo, amadurecem à força, como uma planta de estufa. Vejo isso atingir as relações humanas e mesmo certa dimensão da criação literária que se ancora na linguagem, nos pressupostos do método e da técnica, e pouco abre espaço para uma inspiração que não pode ser instrumentalizada. O tempo interior, de silêncio, paciência e meditação, tem sido cada vez mais preterido pelo imediatismo, que é a noção de um tempo dessacralizado. A mística e a poesia, contra essa engrenagem perversa, nos fazem lembrar de um amadurecimento lento das coisas, de um vazio para ser preenchido pelo que não é vontade nossa, e do quanto pode o nosso olhar quando atenta para uma leitura da realidade em níveis que transcendem o visível e o material. Porque, antes de tudo, o que a poesia e a mística despertam é a nossa faculdade de atenção. E, como diz Cristina Campo, “pedir a um homem que nunca se distraia”, que não ceda “à preguiça do hábito, à hipnose do costume (...) é pedir-lhe uma coisa muito próxima da santidade numa época que parece procurar apenas, com cega fúria e arrepiante sucesso, o divórcio total da mente humana em relação à sua faculdade de atenção”.

 

Pensando nesse outro tempo, não no presente imediato, as “poetisas-místicas” que eu mencionaria são duas: Hilda Hilst e Maria Gabriela Llansol. A leitura da obra de Hilda Hilst, sob a perspectiva da mística associada ao lirismo, revela uma jornada interior real, profunda, extraliterária, para a qual temos como chave de acesso a beleza, no caso da sua poesia, a extravagância no caso da sua prosa. Sobre a tua grande face é um dos muitos livros de poesia de Hilda Hilst em que o “exercício da procura”, como ela mesma diz, se reveste de um esplendor de imagem e de musicalidade para invocar o “Obscuro”, o “Sem Nome”, o “Desejado”. Na sua prosa acontece a mesma procura. Em Qadós (“Kadosh”), o “Pacto que há de vir” com que Hilda inicia o texto é também onde começa “o delírio de perseguição” de que fala María Zambrano no livro O homem e o divino: o delírio de quem não sabe se persegue ou é perseguido até verbalizar esse conflito poeticamente e sair do delírio para o pacto. Quanto à Maria Gabriela Llansol, sua poética talvez esteja bem mais próxima da mística do que da literatura porque passa ao largo da intenção de um construto e deseja “entrar no real” através do texto, abrindo aí uma espécie de clareira onde um “mundo novo e fulgurante” pode ser sentido. Para Llansol, não existe o “como se”; para ela, “uma coisa é ou não é”, o que no texto se manifesta em um lugar de envolvimento afetivo com a beleza, a vida e o pensamento, um lugar que Llansol chama de “espaço edênico”. Nesse espaço, o que importa é a misericórdia, o princípio de bondade e a vontade de conhecer.

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

 

Mariana Ianelli – Já que o nosso ponto de chegada foi Hilda Hilst e Maria Gabriela Llansol, aproveito para transcrever um poema chamado Neste lugar, que foi escrito depois de uma visita que fiz à Casa do Sol, que é também o lugar de uma passagem, um portal, um espaço edênico onde “a coisa é”, por isso não se conforma a analogias ou comparações.

 

O poema diz: “Nenhum traço de delicadeza / Só palavras ávidas / E o tempo, / A devoração do tempo. / Um jardim entregue / Às chuvas e aos ventos. / O que para os cães / É febre de matança / E para um deus / Um dos seus inúmeros / Prazeres. / Caminho de sangue / Onde reina o amor primeiro. / Morada de súbita / Ausência do medo. / Um despenhadeiro, o céu / E uma queda / Sem alívio de esquecimento”.

 

Publicado em IHU-On-Line

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Quinta-feira, 20.10.11

Um presente da poeta

Um poema inédito de Mariana Ianelli

 

 

 

 

 

ARCA DA LEMBRANÇA

 

 

 

 

Um sol de opala se uma tarde é pasto da memória,

Uma luz de chá dourando o canto cego de uma sala

E sobre a mesa, o espelho d'água

 

A ocasião do ato secreto

 

De repovoar veredas, antros, mirantes do passado,

Saudade que vai juncando de ramos, conchas e corais

Todo o imenso dorso de um barco naufragado.

 

 

 

 

© Mariana Ianelli - Iluminuras, 2011

 

 

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Sábado, 25.06.11

Ar entre as colunas

 

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

 

Mariana Ianelli

 

Daqui a uma semana haverá festa no bairro da Graça em Lisboa. Haverá festa no Algarve, em Lagos, na Granja, no Porto, em todos os lugares onde viveu Sophia, que desde há sete anos deixou de ser Sophia para ser tudo quanto existe e ela amava, os jardins, a luz, o vento, o mar ao longe. Será mais uma vez aquele frescor de rosas que vem da terra depois de haver chovido, aquele sonho lúcido de ver o mundo nascer de novo como num primeiro dia, de cantar o amor sem ironia e descobrir na palavra o nome das coisas. No mar será aquele friso branco de espuma, no ar um perfume de orégano e alecrim, uma pureza outra vez iluminada nos muros caiados, nas praças, nas casas, será essa festa um esplendor de formas reunidas, um instante de perfeita arquitetura, a presença viva que as imagens prometiam, uma alma de poeta que enfim cumpriu o seu destino de habitar a substância do tempo, florescendo nas tílias, nas camélias, nos rododendros, emergindo nas vagas que levam os barcos.

 

Sophia, íntima do próprio seu nome, sabia que mesmo perdida a infância guarda uma semente, sabia das coisas por amá-las, por olhar a paisagem longamente, sabia que a poesia não tem futuro, tem apenas mistério, que um poema não é uma aventura de linguagem, é um espelho para ver o mundo, um círculo em redor de uma coisa, uma aliança entre os versos e os dias. Sabia também que eram tempos difíceis, de descrença, de negação, de ameaça, e que ser fiel à imanência se tornou uma espécie de pecado. Mas Sophia confiava na unidade, no sentido positivo do universo, eram as coisas que a moviam e não conceitos, eram os livros vivos que lhe falavam, não os prodígios de criação nem os modismos. Para Sophia escrever era relacionar-se com o mundo, e o mundo para ela era sagrado, havia uma moral poética e uma forma de justiça em participar do real e estabelecer com ele uma harmonia. Sophia não separava vida e poesia, não entendia na literatura atual a excessiva preocupação com a linguagem, a contaminação do escritor por teorias, acreditava que era preciso combater com as trevas, escrever a partir do caos, e não de um texto, para chegar à geometria do poema.

 

Em uma de suas viagens à Grécia, diante do Golfo de Corinto, Sophia agradeceu por ter nascido. Nos templos gregos encontrou os seus poemas, na intimidade entre luz e arquitetura, no equilíbrio entre rigor e doçura. Em Roma contemplou maravilhada a regra de ouro na Praça do Capitólio. Nos parques de arvoredos em Berlim sonhou com a antiga Germânia das florestas. Em pleno voo a caminho de Macau, avistando a costa asiática, começou o seu livro Navegações. No México, pelo “dever de ver”, subiu ao topo da Pirâmide do Sol. Quando veio ao Brasil, adorou o cheiro da fruta e da madeira, as montanhas e as praias brasileiras, esteve em Recife, Cabo Frio, Ouro Preto, e quando desceu em Brasília viu a “Cidade de Atena”. Sophia perseguia uma paisagem e suas raízes, perseguia um tempo não dividido, a palavra na sua forma primitiva, o poema que não é literatura mas uma obra da atenção, uma túnica inconsútil, uma oferta dos deuses, uma aliança com a poeira das estradas, o ar entre as colunas, a casa entre o mar e a montanha, os frutos de setembro, as águas verdes de Brindisi.

 

Era amiga dos poetas, Sophia. Não perdia um minuto com “tricas literárias”, procurava apenas silêncio e tempo livre para escrever. Cantava o esplendor de Thasos e Egina, mas não esquecia o horror de Treblinka e Hiroshima. Batalhou dentro da política por uma sociedade em que a poesia fosse a pedra fundamental da educação e a cultura alcançasse o espaço cotidiano, como quando viveu o 25 de abril e as pessoas atravessavam o Rossio feito um bando de gaivotas. Sophia estava mergulhada na vida e sua vida na poesia, bons versos revelavam para ela dias bem vividos. Mãe de Xavier, Miguel, Sofia, Isabel e Maria, ensinou-lhes a ver a pedra, o ouriço, os búzios, as estrelas, ensinou-lhes a poesia no seu canto vivo, recitada em casa, a caminho do mercado, numa loja, num café, em todos os lugares, a poesia além dos livros.

 

Quando pequena, em noites de temporal, na casa do Porto, Sophia rezava para os pescadores conseguirem voltar a terra. Ouvia da mãe a história de uma menina que morava no mar e isso lhe parecia a máxima felicidade. No jardim semiabandonado da casa da avó, na primavera, colhia rosas e as mastigava. Em seu caderno de latim, no colégio, escreveu: “É-me necessário escrever versos, é-me proibido saber por quê”. Todas essas sementes da infância frutificaram. Sophia agora é tudo o que floresce, o que pede para ser visto, a quem possa ver o mar, a areia, a lua, os jardins, o fogo na floresta, o que pede para ser ouvido, a quem possa ouvir o ritmo das paisagens. Sophia é agora a abundância dessa festa.

 


 

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Sábado, 18.06.11

Cartas portuguesas

Um Don Juan celestial

 

Mariana Ianelli

 

Eis que no mundo das investigações autorais hoje pairam rumores em torno das famosas Cartas Portuguesas. A suspeita é de que essas cartas de amor ardente desde há séculos atribuídas a Mariana Alcoforado tenham sido na realidade forjadas e que um homem chamado Guilleragues seja o autor dessa façanha literária.

 

Uma vez confirmada a hipótese, ganha a literatura uma das versões mais ousadas de Don Juan na voz de uma freira que troca sua fé pela má fortuna, que se mortifica, sacrifica sua vida e se deleita em morrer de amor num transe que seria um autêntico transe religioso se Deus não tivesse sido solenemente destronado por um homem.

 

Esperando por uma visita, depois por uma carta e então não esperando mais nada, pedindo ao amante que se lembre dela, em seguida o desafiando a esquecê-la, apiedando-se de si mesma e então se gabando de amar com violência, vai esta freira enlouquecendo de amor, enlouquecendo esplendidamente, repetindo o nome de um homem mil vezes por dia, amando um retrato mil vezes mais que sua vida, até chegar à última carta como a última fase de um delírio, quando o fervor começa a se transformar em “qualquer coisa parecida com a tranquilidade”, um amor satisfeito em si, um amor sem amante.

 

Rilke, não por acaso, nutria especial admiração pelas Cartas Portuguesas. Assim como deu conselhos a um jovem poeta, também aconselhou certa vez uma de suas amantes a tomar como exemplo o amor de Mariana Alcoforado. Ele que era um solitário, mas sempre cercado de mulheres, fazia prevalecer esse delírio esplêndido em seus galanteios, e o fazia com tamanha arte que realmente acabava sendo visto por suas amantes como “um arcanjo de terno”, um “Fra Angélico”, “uma aparição”. Registre-se aí uma espécie rara de sedutor, um sedutor de almas. Um Don Juan celestial.

 


 

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Sábado, 11.06.11

Amores impossíveis

Sete mil vidas

 

Mariana Ianelli

 

 

 

Amores impossíveis começam dentro de uma biblioteca. Podem ser confrarias, reuniões secretas, pactos de revolução, exércitos de utópicas ideias. Mas nem sempre o que une é a afinidade ou o afeto. Também os opostos se atraem e sugerem estranhos casamentos.

 

Tudo depende de como os livros se organizam, de como este demiurgo incidental que monta sua biblioteca decide agrupar seus exemplares. O que a vida afastou uma biblioteca reconcilia, de modo que Sartre pode agora dividir pacificamente o espaço de alguns centímetros com Merleau-Ponty e Camus, García Márquez pode topar com Vargas Llosa, e Saramago ter Lobo Antunes como um bom vizinho. Aqueles que a vida uniu de repente se desligam e vão morar a muitos livros de distância, Hannah Arendt na ala norte, Heidegger na ala oeste, Henry Miller três andares acima de Anaïs Nin. E há os duetos tanto em vida como numa biblioteca, Goethe e Schiller, Claudel e Gide, Faulkner e Steinbeck, Sophia de Mello Andresen e Jorge de Sena.

 

São tantas as combinações e tão intimamente divertido jogar com elas que pode acontecer de I-Juca Pirama acabar aconchegado entre a Ilíada e a Eneida. Ou então, num canto da estante, lugar ideal para um ninho de fênix, podem se encontrar Alejandra Pizarnik, Sylvia Plath e Anne Sexton. Também não falta a ironia da sorte, que, por uma emergencial economia de espaço, põe lado a lado Ezra Pound e Brecht. Do estado de repouso ao livro de páginas abertas, os encontros variam, traem metódicos critérios, vencem a distância de oceanos e séculos, produzem aqui e ali uma mistura qualquer muito peculiar de essências.

 

Entre chegadas e partidas, os destinos são tão incertos e fortuitos quanto os de uma existência. São as muitas vidas de cada livro. Uma das razões, talvez, por que os gatos gostam tanto de uma biblioteca...

 

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Sábado, 04.06.11

Pacto de honestidade

Um pássaro sujo de neve

 

Mariana Ianelli

 

 

 

Assim o roteirista Tonino Guerra definiu certa vez o seu amigo de alma russa, filho de poeta, o cineasta Andrei Tarkovski. Os dois trabalharam juntos em Nostalgia, primeiro filme que Tarkovski realizou fora da Rússia, inspirado por uma saudade tão profunda do seu país que os campos abertos do interior da Itália nesse filme se converteram em campos de névoa iguais aos do vilarejo a trezentos quilômetros de Moscou onde o cineasta e sua mulher tinham uma casinha. Para a elaboração do roteiro de Nostalgia, Tarkovski visitou com Tonino Guerra o grande portal de pedra que saúda a chegada dos barcos às areias de Flore, a arquitetura barroca das igrejas de Lecce, os paraísos turísticos de Amalfi e Sorrento.

 

Tarkovski se inquietava com uma beleza tão explícita. Eram lugares excessivamente bonitos para o seu filme, radiantes demais para uma paisagem que devia ser a emanação das sombras do seu personagem, um poeta de nome Andrei, que viaja para a Itália em busca de material para biografia de um músico russo do final do século 18 que teria estudado em um conservatório de Bolonha.

 

Nem a pedra ricamente trabalhada nem os cinematográficos espetáculos da natureza interessam a Tarkovski. Tampouco lhe interessam enredos engenhosos, rebuscados, monumentais. Interessa-lhe o detalhe sublime, a força de uma pintura, de uma música, de um poema, o mínimo que poderá fazer do seu filme “um todo metafísico”. Interessa a Tarkovski realçar os interiores, o interior de uma casa, de um quarto de hotel, de uma igreja, e uma planície a perder de vista, um campo a céu aberto que é também um interior, o interior de um homem doente de nostalgia, exilado de sua história, desgarrado de sua pátria e sua família, um homem apaixonado pelo cadáver de sua infância, um solitário que se deixa engolir pela neblina.

 

Escapando da censura, Tarkovski partiu da Rússia para recriá-la na Itália. Acusado de “ter se afastado da realidade” em seus filmes, não podia estar mais profundamente inserido em seu tempo, na angústia do vazio espiritual de seu tempo. Tarkovski acreditava na dignidade e na verdade da arte quando já esses critérios eram molestados pelos próprios artistas.

 

Acreditava na liberdade nos termos de Púchkin, uma liberdade enquanto pacto de honestidade consigo mesmo, sem esperar agradar ou ter sucesso, sem motivações propagandísticas. Considerava-se filho do seu país, preso à sua vocação, e era livre. Era um pássaro seduzido pelo adágio que sobe das ruínas. Um artista que descobriu no seu passado o seu destino.

 

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Sábado, 28.05.11

Insígnia infectada

Nossa cruz interdita

 

Mariana Ianelli

 


 

A suástica que hoje tem seus adeptos não é a mesma que Rudyard Kipling estampava na capa dos seus livros no começo do século 20. Já não representa um amuleto da sorte, representa a corrupção da inteligência que se incorporou a este símbolo desde a sua transformação num slogan nazista.

 

Estamos mais próximos de uma suástica tatuada no peito de um delinquente do que de uma suástica inscrita na cerâmica de um vaso antigo. O que por milênios foi um emblema de felicidade e harmonia em um século tornou-se uma insígnia do horror e do extermínio. Se nos coubesse dar um lugar para este símbolo, dificilmente pensaríamos numa catedral ou num templo budista. Mosaicos, esculturas, altares, portões de uma cidade e páginas de um livro santo já exibiram essa cruz como um signo de bom augúrio, proteção espiritual, equilíbrio. Hoje a suástica é a nossa cruz interdita. Não ousamos mais exibi-la, sob o risco de denúncia, de repúdio, de censura por falta de bom senso.

 

Como reabilitar uma cruz? É a pergunta que fica. Como desinfetá-la de uma representação hedionda, como pregá-la de novo no alto de uma fachada sem que isto seja a apologia de um crime, um insulto à memória de um povo, a extravagância infeliz de um polemista, como lembrar da pré-história de um símbolo e associá-lo antes a um santuário que a um campo de extermínio, como fazemos para girar essa cruz e, condizendo com o seu sentido, progredir.

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

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Sábado, 21.05.11

Existem mundos

 

Um mundo de nomes

 

Mariana Ianelli

 

Não chegam notícias de Ghardaia. Não sabemos como é a vida em Sandoa. Deve existir um céu estrelado em Marbat, uma mulher deslumbrante em Kandalaksha, uma alma de poeta em Jayapura. Pode ser que ainda hoje nas ilhas Banks as pessoas tenham cada uma sua canção particular como carta de recomendação para o além-túmulo. Alguma delicadeza há de existir em Nanquim, algum prazer em Puerto Deseado, alguma fresca de fim de tarde em Buenaventura, coisas pequenas mas extraordinárias que façam jus à beleza desses nomes.

 

O que sabemos de cidadezinhas, ilhas e aldeias que de repente ocupam o noticiário do mundo é outra coisa. Sabemos de Leogane, Porto Príncipe e Carrefour porque ali a terra tremeu e esgarçou a chaga da miséria à vista de todos. Lembramos de Beslan porque esse nome evoca um massacre e cento e oitenta e seis velas acesas, uma para cada criança. Chegam notícias da ilha de Honshu depois de ter passado por ali um tsunami. Sabemos de Strasshof desde que uma menina desapareceu a caminho da escola e ressurgiu, fugida de um cativeiro, mais de oito anos depois. Dogo Nahawa muito possivelmente continuaria sendo uma aldeia escondida no mapa se centenas de agricultores não tivessem sido retalhados a golpes de facão. Nem tão cedo ouviríamos falar de Abbottabah se na madrugada de uma segunda-feira não tivessem descido ali vinte soldados com suas metralhadoras.

 

Quando esses nomes musicais e antes desconhecidos tornam-se o assunto do dia não é por seus jardins de cerejeira, sua pacatez, suas canções ao ritmo da colheita, suas terras morenas e brancas. São nomes que se fazem pronunciar por alguma exorbitância à altura do mundo. Não porque falem daquelas coisas pequenas mas extraordinárias que segredam que não existe um mundo. Existem mundos.

 

 


 

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Sábado, 14.05.11

Mistura de grito, sussuro e canto

 

 

Noturno Profundo

 

Mariana Ianelli

 

A Áustria é um país de florestas negras e escritores noturnos. Basta pensar em Robert Musil, Ingeborg Bachmann, Thomas Bernhard. Há uma abóbada escura cobrindo telhados, bosques, igrejas, montanhas. Há um clima de outono e angústia. Se cada livro tem sua porção de luz e sombra, estamos no crepúsculo. Mas em toda paisagem não há nada tão sombrio quanto um poema de Georg Trakl. Não há paisagem mais cheia de trevas. Georg Trakl é a flor azul da Áustria, o pássaro selvagem, o noturno profundo.

 

Entramos na noite e em tudo o que a noite propicia, os sonhos, a loucura, as formas do medo, segredos de amor e morte. Púrpura, marrom, azul e negro são as cores de Georg Trakl. Existe uma massa escura de pinheiros e por baixo dela um ar de chumbo. Nessa pintura aparecem camponeses, pastores, caçadores, soldados e anjos. Aqui e ali, uma pincelada de branco, o branco de um rosto petrificado, o branco do mármore e dos ossos. Os animais da noite de Trakl são os morcegos, as serpentes, os ratos, as aranhas. A lua vermelha reflete o sol se pondo do outro lado do mundo. Há um canal por onde desce um barco vazio e estrelas que se apagam. Há uma cor de ouro, mas esse ouro não refulge, é a cor de um dia que termina, a cor de uma infância que já vai muito longe. O sentimento da paisagem é de desterro, de orfandade, a solidão do último homem de uma linhagem assombrado pelo vulto dos seus ancestrais. É também um sentimento de filho não-nascido, de inocência arrancada e morta. Então uns olhos se abrem. Os olhos amarelos de Deus. E no meio da noite um salmo se levanta, uma flauta entre os juncos, o matiz de todos esses azuis, lilases, vermelhos e brancos: a cor rosa do rosto de um anjo. Uma poesia que é mistura de grito, sussurro e canto: De Profundis.

 

Georg Trakl viu de frente o sofrimento dos soldados austríacos feridos na batalha de Grodek, na Galícia. Viu a melancolia de um exército quando se desagrega em combates individuais contra a morte. Trakl foi um dos que estiveram nos campos de sangue no início da Primeira Guerra. Tentou o suicídio uma vez e falhou. Não sendo isso tenebroso o bastante, Trakl e sua irmã Gretl eram cocainômanos e amantes. Em novembro de 1914, em sua segunda tentativa, agora com êxito, Georg Trakl morre de uma orvedose. Não se pode dizer que foi um poeta precoce. O que viveu em seus 27 anos muitos não vivem durante a vida toda. Não foi alguém que conheceu a noite, simplesmente. Foi alguém que esteve na noite profunda.

 

 

 

 

 


 

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

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Sábado, 07.05.11

Um lugar que se habita

Dia do Silêncio

 

Mariana Ianelli

 

O que quer que justifique a data, é irresistível pensar que esse dia existe desde sempre, que apenas gradativamente foi perdendo espaço, sendo expulso, até resultar numa ilha remota da qual já não se tem notícia, um pedaço de terra aonde agora só se chega, quando se chega, para breves passeios turísticos.

 

Não é o lugar onde alguém fica ruminando uma estratégia, uma jogada de mestre, qualquer coisa bem pensada que vai crescendo, amadurecendo na sombra, não é isso. Nem é uma forma de protesto, um estado de alerta, uma prova declarada de desprezo ou uma divergência tão grande que nada vale a pena ser dito.Não é um minuto de silêncio pelas vítimas de uma chacina.

 

Existe a censura, a veladura, o regime do medo, mas também não é isso, esse túmulo de verdades escondidas onde o que fecha a boca é a impotência, a humilhação ou a cumplicidade num crime. Tudo isso existe dentro de limites bem conhecidos e forma só uma casca de silêncio. Por baixo e ao redor dessa casca continua o mesmo barulho, o mesmo trabalho de colmeia, um mundo de insatisfações, de intenções e de interesses confundidos.

 

O silêncio que ficou difícil, que foi aos poucos se afastando e se perdendo é outro. Não quer significar nada, não sente falta de nada. Não tem o que esconder nem o que reprimir. É quando tudo repousa por dentro. Um horizonte tranquilo, exato, completo. Nenhuma rajada de vento, nem mau pressentimento, nenhum desejo de estar em outra parte. É um chão de pedra com silêncio de pedra. A coisa mais simples. Uma paragem. Um lugar que se habita.

 

Lembrando Ernesto Sabato falecido na madrugada do dia 30/04, último sábado:

 

A dois meses de seu centenário, Sabato encetou viagem para outros séculos. Porque lhe parecia triste morrer, foi mais além: tornou-se o anfitrião de uma outra realidade. Penetrou na noite definitiva, como fazem aqueles que de um sonho não voltam mais. Agora podem esses dois grandes amigos, Borges e Sabato, retomar sua conversa e devanear sobre a vida como antes devaneavam sobre a eternidade.

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

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Sexta-feira, 06.05.11

Uma Viagem à Índia

 

À procura do Espírito

 

Mariana Ianelli

 

Quando Odysseus Elytis publicou seu longo poema Axíon Estí (Louvado Seja), em 1959, seu nome começou a popularizar-se na Grécia, alcançando reconhecimento internacional pouco tempo depois, com a versão musicada por Míkis Theodorákis, um espetáculo de canto e orquestra capaz do prodígio de comover multidões. Elytis acreditava ser possível um poeta moderno beber da tradição e, partindo de novas condicionantes, “conseguir erguer mais uma vez um edifício sólido”.

 

Foi assim que, de uma visão da Natureza, da História, das Leis e do Destino surgiu o longo poema de um homem sozinho em um mundo que, apesar do que foi feito dele, ainda é um mundo digno de louvor. Passado mais de meio século, surge Uma Viagem à Índia, de Gonçalo M. Tavares. À primeira vista, surpreende a criação de uma epopeia em pleno século 21. Sem dúvida existe aí uma obra invulgar e portentosa, porém se trata de um portento no âmbito da linguagem.

 

História, Natureza, Destino participam desse longo poema, mas já não promovem uma conversão positiva nem ascendem à dimensão de um canto congraçador, como é o caso do poema de Odysseus Elytis. Nessa epopeia de um único homem à procura do Espírito, toda a viagem se passa em uma jornada do pensamento atravessada por sensações, intuições e, sobretudo, pelo sopro desmistificador da ironia.

 

Dentro do rol das grandes aventuras literárias que pensam a própria linguagem, Uma Viagem à Índia se destaca como uma exuberante reflexão sobre questões de poética em um século versado em tecnologia, no individualismo e no aviltamento das relações humanas convertidas em transações comerciais. Com uma vasta obra que passeia pelos mais diversos gêneros, do teatro ao romance, do ensaio à poesia, Gonçalo M. Tavares é dono de uma vitalidade criadora que particulariza sua voz no campo da metaficção contemporânea, o que se faz notar pela copiosa lista de prêmios nacionais e internacionais que seus livros acumulam, o mais recente deles, Prêmio de Melhor Livro de Ficção Narrativa, da Sociedade Portuguesa de Autores, concedido a Uma Viagem à Índia. Embora circunscrito nos domínios da ficção narrativa, esse poema em dez cantos de Gonçalo se apresenta como o lugar para onde convergem e onde se adensam os temas e caracteres dos personagens literários que desde há muito lhe são caros, mas não apenas isso, senão que neste lugar de convergência dos aspectos fundamentais de sua obra o autor exercita longamente sua ética de admirar o mundo, uma disciplina da atenção que direciona seu olhar e esculpe a matéria deste e de outros poemas anteriores de sua trajetória.

 

Pelo menos três forças podem ser identificadas na arquitetura dessa epopeia. A primeira delas vem da série O Bairro, um segmento da obra de Gonçalo que reúne personagens da literatura e da filosofia ficcionalizados pelo autor. A ideia de escritores que se aproximam por habitarem o mesmo bairro intelectual, como Borges uma vez definiu seu parentesco com o escritor Ernesto Sabato, é uma ideia evidente na configuração do bairro literário de Gonçalo. Ali habitam inúmeros personagens, entre eles, Sr. Valéry, Sr. Cortázar, Sr. Borges, Sr. Calvino, Sr. Juarroz, Sr. Brecht, Sr. Eliot, Sr. Breton. Os traços definidores da personalidade de cada um deles e do modo como observam o mundo e a si mesmos parecem se valer do esboço da mesma “Quimera da mitologia intelectual” que inspirou Paul Valéry a criar seu Monsieur Teste. Também compõe tais personagens uma atmosfera lúdica e afetiva como a que envolve os cronópios e famas de Cortázar.

 

Em Uma Viagem à Índia, aquele que viaja para arejar o seu caminho e para ler nas variações da paisagem diferenças de linguagem, aquele que se move dentro da epopeia de cada dia em meio a elaborações teóricas, pressentimentos e vontades, chama-se Bloom. Esta é a criatura literária que empreende a longa odisseia interior do homem contemporâneo do Ocidente ao Oriente, transpondo, em suas deambulações mentais, fronteiras entre o desejável e a realidade. Em Bloom se concentra e explode em ação a energia que alimenta as especulações dos personagens da série O Bairro: os exercícios de atenção do Sr. Calvino, a originalidade dos raciocínios do Sr. Juarroz, os princípios de lógica do Sr. Valéry, as elucubrações do Sr. Eliot em suas conferências sobre poesia. A fonte dessa energia mental que entretém os habitantes do bairro de Gonçalo e que impele o herói de sua epopeia a se deslocar pelo mundo é uma segunda matemática, “a que se perdeu nos tempos”, como diz o Sr. Henri, a matemática “que deu origem, por caminhos e subcaminhos, à poesia”.

 

Pois é esta secreta inteligência, de uma matemática que pode já ter existido e ter sido subjugada pela força, derrotada em uma batalha arcana entre dois povos, é esta lógica sensível enquanto modo de perceber a realidade e de agir sobre ela que Gonçalo põe em prática na jornada de Bloom. “Se a álgebra é uma religião rigorosa, / a poesia será uma religião excessiva, religião entre / a embriaguez e um espaço onde / as mais belas músicas descansam/ antes de novamente conquistarem o ar.” (Canto II). Com essa embriaguez e um olhar ciente de imprevisibilidades, Bloom sai em busca de “uma alegria espiritual mas que exista”, pois aí está o propósito de sua viagem à Índia: a busca de um sistema poético de pensamento que possa converter-se não somente em lucidez mas também em júbilo, tal como o absinto para o Sr. Henri erige sua “teoria sobre o mundo”. Bloom é um especialista na “ciência das investigações privadas; a ciência em que um homem se experimenta”. Bloom sabe que “o tempo tornou-se material” e agora “exige atos e experiência”. Por isso Bloom é um homem que decide, um corpo em excitação constante, que se desloca e utiliza sua energia tanto para a guerra como para o amor.

 

A busca pelo Espírito que move esse personagem desassossegado e reflexivo a partir da velha Europa até a Índia das águas sagradas é uma problemática da poética dos novos tempos em que “as palavras exigem apoios místicos mas que estejam no chão como sapatos”; é também uma problemática para a estética de uma época em que “os homens são gênios do bem para o ouro, gênios do mal para a paisagem”; e ainda uma problemática para a língua de um país “que já nem se preocupa se fabrica ou não poetas”; todas elas questões que se colocam como tarefa para o pensamento em um século que descende do progresso tecnológico que viabilizou as grandes fábricas da morte e que portanto já não tolera sutilezas nem palavras delicadas. Uma segunda força na elaboração dessa epopeia, que compõe o cenário de peripécias vividas pelo herói, é o que reúne na Tetratologia de Gonçalo os romances Um homem: Klaus Klump, A máquina de Joseph Walser, Jerusalém e Aprender a rezar na era da técnica: o problema do mal.

 

A galeria de assassinos, prostitutas e miseráveis que nesses romances colabora para a criação de uma atmosfera verdadeiramente sombria, em Uma Viagem à Índia funciona como uma emanação dos pressentimentos de Bloom, configurações de uma realidade perversa sobre a qual o personagem medita enquanto viaja. Bloom vem, ele mesmo, de um passado violento e em sua viagem espera encontrar, além de sabedoria, esquecimento. Bloom sabe que “nem um segundo separa a educação da barbárie”, que “só não se mata por acasos do caminho” e que “não se enterra a maldade, / ela é apenas interrompida”.

 

Lenz, personagem de Aprender a rezar na era da técnica, vê uma maldade subterrânea na natureza, que está crescendo e um dia se tornará o grande inimigo do homem. Bloom sabe que “há uma guerra bem mais forte e bem mais alta, / porém os generais ainda não perceberam”, e essa guerra será contra a Natureza. O personagem Busbeck, de Jerusalém, empenha-se em construir um gráfico do horror na História, uma espécie de eletrocardiograma da maldade humana. Bloom, por sua vez, procura fazer do sofrimento um sistema e tem sua viagem mapeada em um plano cartesiano de ações, intenções e sentimentos que resultam em um itinerário da melancolia contemporânea. O personagem Klober, de A máquina de Joseph Walser, acredita que “o ódio é a grande marca do Homem”, e que em breve esta será a única razão para que dois corpos se aproximem. Para Bloom, o ódio entre os homens é uma lei da natureza e, se ainda lhe resta uma certeza, é a de que ninguém se aproximará dele para abraçá-lo. Em Um homem: Klaus Klump, o protagonista não sabe se voltará para casa com os dois braços com que saiu. Bloom, por sua vez, sabe que “estamos vivos, levantamos a cabeça: cortam-nos a cabeça”.

 

Percorrendo este mundo decomposto pela mesquinhez humana e pela crueldade, buscando espaço para o otimismo, dispondo de uma coragem tanto capaz de matar como de salvar e construir, o herói de Uma Viagem à Índia parece imbuído da determinação de esquecer não apenas o seu passado, mas “todo este atoleiro para se chegar a ser um homem e não uma máquina de incubar o ódio”, estas que são palavras de Albert Camus dedicadas ao poeta Alexandre Blok.

 

Eis aí a terceira força na epopeia de Gonçalo: a poesia propriamente dita, o amor enquanto sentimento central, a música que vem dos números, uma alegria que não tem preço no mercado das coisas consumíveis, a grande alegria que sustenta uma montanha e que se pode chamar de alma, as mensagens dos sonhos, mais próximas da verdade que da ciência, a crença no espírito: este é o país que o herói de Gonçalo procura. Energia e Ética, poema de uma coletânea do autor já publicada no Brasil em 2005, intitulada 1, serve como síntese da ação poética de Bloom em sua jornada: “qualquer pessoa dar um passo que seja / em direção ao que não aprecia, para insultar ou derrubar, / parece-me brutal perda de tempo, uma falha grave / no órgão de admirar o mundo”. É assim que, pouco antes de chegar à Índia, Bloom decide admirar.

 

Depois de sobreviver à maldade dos homens e da natureza, depois de ter aprendido com o sofrimento, Bloom dirige sua energia para a admiração e a paciência. Porque apesar de o mundo ter perdido o Espírito, Bloom não perdeu o espírito: “O estômago existe, e tem fome./ (...) / Mas o espírito também existe, e tem fome”. Porque apesar de trazer consigo um inferno, Bloom também traz o indispensável para a alegria. Porque “os milagres recolheram há muito às cavalariças”, no entanto, “não é por ter entrado no século XXI que a alma perdeu a atualidade”.

 

A procura pela sabedoria de um país sagrado aqui se traduz na investigação de uma potência poética que seja realizável neste novo século, que possa salvar da bestialidade o homem contemporâneo, elevá-lo a um estado de atenção e a uma vontade de edificar, não pela força mas por uma “claridade súbita”, um discurso mágico enquanto experiência, uma experiência que exceda os domínios do literário. Sucede que, de seu longo périplo, o herói da epopeia de Gonçalo regressa desiludido. A possibilidade de iluminação permanece em estado de linguagem, simbolizada na edição rara do Mahabarata que Bloom carrega em sua mala. A derradeira estação desse itinerário da melancolia contemporânea não é sabedoria nem música, mas tédio.

 

Curiosamente, o ano de 2003, data em que se passa a narrativa da epopeia, marca também o ano de estreia de Um Filme Falado, de Manoel de Oliveira, uma espécie de documentário ficcional sobre uma professora de História e sua filha, que partem de Portugal até a Índia, refazendo nesse percurso o mesmo trajeto realizado por Vasco da Gama no século 15. E o que triunfa dessa visitação à memória de antigas civilizações, o que resta, ao final do filme, de toda essa aprendizagem minuciosa do olhar, que se detém com mesma surpresa sobre o mundo de ontem e o mundo de hoje, é a barbárie, a destruição, o terrorismo.

 

Fica, pois, como tarefa para depois dessa viagem histórica – uma viagem que, nessa epopeia, tal como em Os Lusíadas, invoca o auxílio das ninfas e das musas, sendo portanto uma jornada pela história da linguagem, entre outros pilares (ou ruínas) da civilização –, fica como tarefa, para além da literatura, repensar o que pode um poema quando libera sua energia e fortalece a vontade humana. Afinal, como declarava Odysseus Elytis em seu discurso na entrega do Prêmio Nobel, em 1979, “se a poesia contém uma garantia, e isto nestes tempos sombrios, é precisamente esta: que o nosso destino, apesar de tudo, está nas nossas mãos”.

 

Mariana Ianelli - Publicado no Rascunho

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Sábado, 30.04.11

Uma nota de elegância

Quem é Leonard Cohen

 

Mariana Ianelli

 

Leonard Cohen era ainda um menino quando foi seduzido por essa mulher mítica, de sensualidade litúrgica, pestanas orvalhadas e perfume de vinhas floridas. Devia ter oito ou nove anos quando isso aconteceu, quando a poesia desabou sobre ele dentro de uma sinagoga em Montreal. Desde muito cedo pensou que podia ser escritor, mas nunca esteve completamente seguro disso. Foi assim que se mudou para a torre da Música, duvidando sempre. Foi assim que se viu atado a uma mesa, fadado a esperar por anos a fio até encontrar a palavra certa, o verso perfeito, porque essa era a sua religião.

 

Poeta, monge, cantor, amante são títulos que dizem pouco sobre Leonard Cohen. Melhor dizer que ele já abdicou de muitas coisas, que elegeu um país solitário e içou uma bandeira branca, que discutiu com a Eternidade e uma vez se deitou com uma mulher de ancas infantis em um quarto em Los Angeles. Que adormeceu a meio de um salmo, jejuou em segredo e foi um dos filhos da neve, esse mesmo filho que depois dos cinquenta teve saudades da mãe e desejou levá-la para a Índia e vê-la maravilhar-se com a cinza do Mar Arábico.

 

Leonard Cohen é esse homem pouco nostálgico, que não pode ser confortado nem guarda remorsos, o que teve o coração desfeito e ficou acordado a noite inteira pensando em alguma forma de beleza. É esse homem que afundou feito uma rocha, que raspou a cabeça, envergou uma túnica e agiu generosamente mesmo remoendo de ódio por dentro. É esse admirador das belas mulheres de Bombaim, o que espera que haja música no Paraíso, o pequeno judeu com sua Bíblia, que escreve sobre as sombras do Holocausto e sobre uma nuvem em forma de cogumelo, aquele que ama Joana d’Arc como uma de suas últimas mulheres.

 

Leonard Cohen é o peregrino que navega numa barca de asas decepadas, o que compõe um longo poema chamado Isaías, o apaixonado que, mesmo tendo esquecido metade da sua vida, ainda se lembra das coxas de uma mulher escapando das suas mãos como um cardume de peixes assustadiços. É esse homem que uma vez sentiu o seu corpo tão cheio de ternura que se dispôs a perdoar a toda gente. Esse poeta que escreveu durante anos poemas em uma mesa entre ervas daninhas e margaridas no fundo de uma casa em uma ilha do mar Egeu. Esse amante da lua que já tentou remover com seus óleos o feitiço do rival sobre a memória da namorada.

 

Leonard Cohen canta para o vento porque o vento é amigo do seu espírito de pluma. Ele sabe que os insetos são como os místicos por mal distinguirem entre vida e morte. Sabe que as possibilidades estão aí para serem derrotadas. Sabe também que o seu tempo está se esgotando e que nunca entenderá completamente esse vale de lágrimas. Não espera vitória nem honrarias. Conhece muito pouco do seu próprio nome. Um dia reuniu suas partes todas em torno de uma súplica, desejou morrer na cruz por um amigo, hesitou entre abandonar um amor e acompanhar os peregrinos, deixou sua túnica pendurada no gancho de uma velha cabana de um mosteiro e levou uma mulher até a beira do rio para amá-la, como qualquer outro homem teria feito.

 

Leonard Cohen está sentado debaixo de uma janela onde a luz é intensa. Está muito perto das coisas que perdeu e sabe que não terá de perdê-las novamente. É esse homem que melhor se sente quanto menos sabe quem é. Esse que agora sobe ao palco para cantar, no auge dos seus setenta e seis anos, com seu chapéu de feltro e seu terno impecável, provando que ainda existe neste mundo uma nota de elegância. Que ainda existe alguém que sente e pensa com elegância. Isso ele nos diz sem palavras, com um sorriso de doçura, apenas.

 

 

 

 

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

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Quinta-feira, 28.04.11

Fragmentos visuais de um poema - I

 

As vozes, de novo, as vozes

 

 

 

 

 

 

 

© Mariana Ianelli,  2006

publicado por ardotempo às 16:19 | Comentar | Adicionar

Fragmentos visuais de um poema - II

 

Haja fome, haja fúria!

 

 

 

 

 

 

 

© Mariana Ianelli,  2006

publicado por ardotempo às 16:16 | Comentar | Adicionar

Fragmentos visuais de um poema - III

 

 

Esposas entrelaçadas, virgínias

 

 

 

 

 

 

© Mariana Ianelli,  2006

 

publicado por ardotempo às 12:37 | Comentar | Adicionar

Fragmentos visuais de um poema - IV

 

Venham pequenos e grandes,

venham graves e agudos

 

 

 

 

 

 

© Mariana Ianelli,  2006

 

publicado por ardotempo às 12:25 | Comentar | Adicionar

Fragmentos visuais de um poema - V

 

Dentes e membros e fendas e cicatrizes

 

 

 

 

 

© Mariana Ianelli,  2006

 

publicado por ardotempo às 12:15 | Comentar | Adicionar

Fragmentos visuais de um poema - VI

 

Cantem por medo e sorriam

 

 

 


 

 

© Mariana Ianelli,  2006

publicado por ardotempo às 12:06 | Comentar | Adicionar

Fragmentos visuais de um poema - VII

 

 

Cubram-se de moedas, esquartejem a música!

 

 

 

 

 

 

© Mariana Ianelli,  2006

 

publicado por ardotempo às 05:29 | Comentar | Adicionar

Fragmentos visuais de um poema - VIII

 

 

Seda, escarlate, marfim e ouro, muito ouro

 

 

 

 

 

© Mariana Ianelli,  2006

 

publicado por ardotempo às 05:05 | Comentar | Adicionar

Fragmentos visuais de um poema - IX

 

 

Dissimulem qualquer resquício de alma

 

 

 

 

 

 

© Mariana Ianelli,  2006

publicado por ardotempo às 05:01 | Comentar | Adicionar

Fragmentos visuais de um poema - X

 

 

Não se sintam culpados

 

 

 

 

 

 

© Mariana Ianelli,  2006

 

publicado por ardotempo às 01:20 | Comentar | Adicionar

Fragmentos visuais de um poema - XI

 

 

Não chorem

 

 

 

 

 

 

© Mariana Ianelli,  2006

 

publicado por ardotempo às 01:08 | Comentar | Adicionar

Fragmentos visuais de um poema - XII

 

 

Dói a falta de recato?

 

 

 

 


 

 

 

© Mariana Ianelli,  2006

publicado por ardotempo às 00:54 | Comentar | Adicionar

Fragmentos visuais de um poema - XIII

 

 

Vai subindo a fumaça do riso

 

 

 

 

 

 

 

© Mariana Ianelli,  2006

publicado por ardotempo às 00:51 | Comentar | Adicionar

Fragmentos visuais de um poema - XIV

 

 

As vozes, de novo, as vozes

 

 

 

 

 

© Mariana Ianelli,  2006

publicado por ardotempo às 00:49 | Comentar | Adicionar
Sábado, 23.04.11

Queimadas numa profecia

 

 

Depois do último dia

 

Mariana Ianelli

 

Quando as chaves giravam nas portas era a mesma pergunta para El Djohar Akrour e suas companheiras de cela: “Hoje somos nós?”. Da pequena janela dava para ouvir a guilhotina sendo montada lá fora. Isso foi há mais de cinquenta anos e El Djohar ainda se lembra das correntes nas mãos e nos pés. Como ela, muitos outros que participaram da guerra pela libertação da Argélia passaram pelo corredor da morte. Alá Akbar, gritavam os que iam para a guilhotina, Alá Akbar respondiam os condenados de dentro das celas. Os que receberam indulto agora se lembram.

 

Lembram das noites sem dormir, das orações, das canções, dos lamentos, lembram de jejuar um dia depois da execução de um condenado que poderia ter sido qualquer um deles. Não estavam mais sendo punidos por um crime, estavam levando sua resistência até o cúmulo do sacrifício. Tinham já cruzado o limite das intrincadas questões, das circunstâncias delicadas, dos pequenos problemas a serem resolvidos. Chegaram tão perto do último dia que foi como terem se queimado numa profecia.

 

Lembram de subir nos ombros uns dos outros até a janela engradada no alto da cela porque o que era feito lá fora era feito por eles, a montagem da máquina de calar os insurgentes. Lembram do peso do silêncio, horas longas para cumprir gestos mínimos, aqueles gestos de todos os dias, cegos, repetitivos, gestos de que ninguém normalmente se dá conta porque são mecanismos de rotina, absolutamente insignificantes se desta vez não tivessem a consistência de uma vida. Isso aconteceu durante os anos de terrorismo que encarniçaram a luta entre argelinos e franceses.

 

Quando uma cidade acordava às quatro horas da manhã para acompanhar um dos condenados, quando uma lâmina bem oleada trespassava uma cabeça e as mulheres da casbá respondiam com preces e cantos. Isso aconteceu mais de um século depois de Victor Hugo ter publicado O Último Dia de um Condenado, seu manifesto literário contra a pena de morte, “esse direito exorbitante que a sociedade se outorga, de poder subtrair o que não deu”.

 

 

 

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

publicado por ardotempo às 12:46 | Comentar | Adicionar
Sábado, 16.04.11

Poema inédito de Mariana Ianelli

 

 

Legião

 


 

As estátuas cobertas de hera

Os casulos debaixo da escada

O chão traidor, esverdeado

 

Mas ninguém se lembra

Que em outros tempos

Coisas minúsculas se agarravam

E cresciam atrás dos reposteiros

 

Toda uma orgia assim igual a essa,

De trepadeiras e crisálidas,

Um miasma de verdades escondidas

Que a seu tempo conquistaria tudo

Sob este sol das três da tarde

Rebentando, arremetendo

Sem mais fazer sombra pela casa.


 

 

 

© Mariana Ianelli, Legião, 2011 (Iluminuras)

 


 

 


 

publicado por ardotempo às 14:39 | Comentar | Adicionar
Sábado, 09.04.11

Explosão de estrelas

Breve anotação sobre um tigre

 

Mariana Ianelli

 

Júbilo é uma palavra difícil de viver. Algo raro, tão raro quanto um tigre. Demora para acontecer, mas quando acontece, uma pessoa já não pode mais voltar ao que era antes de ter sentido o que sentiu.

 

Um acontecimento assim é o que excita um poeta a meter-se no escuro, procurando. Porque se existe um lugar além de um templo na Tailândia onde ainda hoje esse tigre passeia livre, longe de armadilhas, esse lugar é um poema. Precisa de silêncio para existir, por isso é tão raro o júbilo.

 

Não é algo que se possa dizer, é algo para ser sentido. Precisa de um tempo que perdure e, sobre esse tempo, um poema não mente. Não importa quantos dias sejam necessários trabalhando, vagando à procura, o tempo do poema depende do fulgor de um momento e esse momento depende de uma vida. Pretender tomá-lo à força, além de inútil, seria ridículo. Pode estar próximo e cada vez mais próximo, pode se fazer pressentir numa pausa do vento, num prólogo de bonança, e ainda assim não é certo que venha. Um júbilo não se compreende, é-se compreendido por ele, envolvido por ele, abraçado, possuído.

 

Traçar um plano de busca, estudar um provável cruzamento de rotas para encontrar esse animal rajado seria perder a explosão de estrelas que existe em ser por ele surpreendido numa estreita passagem. Procurá-lo pede um pensamento vago, qualquer coisa de desejo distraído, um devaneio sem pretensão de eficácia, sem meta a ser atingida, a sugestão de que está bem como está, o júbilo venha ou não venha.

 

É procurar indefinidamente até que chegue esse momento, um momento de presença, esse instante puro de descobrimento em que o poema diz amor e o amor é feito. Entra no poema quem entra nesse bosque sem palavra, nesse erotismo de uma comunicação profunda. Mas tudo o que se fala sobre o júbilo sempre é pouco, muito pouco fora do seu acontecimento. O júbilo acontece livre e no silêncio. É uma alegria rara, que perdura, um prazer de melodia quando irrompe, quando arrebata e transverbera um corpo. Não se pode apanhá-lo numa palavra. E mesmo que ficasse preso, que fosse agarrado, absurdamente enredado numa armadilha, já não seria júbilo, seria só um animal triste.

 

 

 

 

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

publicado por ardotempo às 14:22 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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