Sábado, 11.02.12

O que cada vez mais se parece

Tempos difíceis

 

João Ventura

 

Por estes dias, celebram-se 200 anos do nascimento de Charles Dickens, e o mundo fora dos livros, desgraçadamente, vai-se parecendo, cada vez mais, com o mesmo mundo que ele retratou em romances como David Copperfield, Oliver Twist,

 

Tempos Difíceis ou História de Duas Cidades, que contribuíram para a minha formação literária e de algum modo, ajudaram a moldar as minhas convicções políticas. A actualidade da sua obra pode ver-se, por exemplo, no começo de História de Duas Cidades: "Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos; a idade da sabedora, e também da loucura; a época das crenças e da incredulidade; a era da luz e das trevas; a primavera da esperança e o inverno do desespero".

 

Em Tempos Difíceis, Dickens, critica com acidez as deploráveis condições de vida dos operários ingleses e o fosso abismal que existia entre a sua vida precária e o fausto obsceno dos ricos da Inglaterra vitoriana. Nestes tempos difíceis de crise que assola a Europa, com os impostos a aumentar e os salários a diminuir, com o desemprego a disparar para números impossíveis, com sucessivos cortes nas prestações sociais dos estados, enfim, com cada vez mais amplos sectores das populações a empobrecer, e com a Grécia, seguida de Portugal - onde, de acordo, com números do Eurostat, mais de 2.500 milhões de pessoas sobrevivem em estado de pobreza e de exclusão social - e de outros países europeus, caminhando à beira do abismo para onde os sucessivos desgovernos e os especuladores financeiros nos vão empurrando, impossível não nos assombrarmos ao constatar como este romance publicado em 1854 descreve a realidade actual.

 

É que a obscena desigualdade entre os miseráveis lares proletários, retratados por Dickens na sua frieza, obscuridade e pobreza extremas, e as luxuosas mansões dos capitalistas da época que tratavam os seus assalariados como bestas de carga, parece reproduzir-se nestes nossos tempos difíceis em que que aos magros salários de muitos se contrapõem aos altos salários de uns tantos gestores transitados da política para as empresas e para os bancos. A única diferença entre os privilegiados dos tempos difíceis de Dickens e os privilegiados de agora, é que os de antes se chamavam utilitaristas e os de hoje são neo-liberais, e que uns se reviam em Stuart Miller e os outros revêm-se em Milton Friedman.

 


Vale a pena recordar um acontecimento catastrófico vivido por Dickens, num início de Verão de 1865, quando viu despenhar-se num precipício sete carruagens do comboio em que viajava. Premonitória metáfora de uma Europa, primeiro a Grécia, depois a Irlanda e Portugal e logo as restantes carruagens deste comboio europeu - sem maquinista mas com maquinadores - que hoje vai descarrilando arriscando uma queda sem fim no abismo que se abre sob o seu gasto e destravado rodado metálico.

 

Talvez seja, ainda, possível evitar a queda se os maquinadores que nos conduzem para a catástrofe forem capazes de imitar o mesquinho senhor Scrooge de Um conto de Natal, que ao ver o futuro sombrio anunciado pelos espíritos do Passado, do Presente e do Futuro, onde podia ver-se um túmulo com o seu epitáfio e nenhuma flor flor, soube redimir-se a tempo e converter-se num homem generoso. Uma parábola, afinal, que a senhora Merkel deveria recordar se quiser, ainda, ter remissão.

 

João Ventura - Publicado no blog O que cai dos dias 

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Sábado, 17.09.11

A cultura da queda

Retóricas do 11-S

 

João Ventura

 

 

 

Foi há dez anos que a queda das Torres Gémeas, em Nova Iorque, inaugurou de forma tragicamente espectacular o novo milénio, trazendo consigo o regresso da História depois do seu «fim» proclamado por Francis Fukuyama e de um período em que se assistiu a uma espécie de «greve dos acontecimentos», segundo a fórmula de Baudrillard.

 

O espectáculo de fogo mortal, visível em tempo real em todo o planeta, superaria todas as ficções, tornando-se na grande metáfora de um mundo com anemia moral e alimentado pela hipocrisia e pela felicidade engarrafada, mas irremediavelmente ferido a partir do 11de Setembro de 2001. A vida nova depois do 11-S, simultaneamente maculada e redentora, tem dado origem a uma repetição dos discursos sobre o acontecimento, visando a sua «legibilidade», à luz de interesses variados e, muitas vezes, antagónicos, legitimadores da resposta ocidental à «barbárie» de um Islão desfigurado, perseguida pelo «profeta electrónico» Bin Laden, cujas aparições foram acontecendo na única realidade do nosso tempo, a televisão.

 

Que caminhamos agora entre os vestígios de uma catástrofe cuja onda de choque continua a repercutir-se no mundo já o sabemos. Só não sabemos é se a catástrofe ficará por ali, sepultada junto ao ground zero nova-iorquino, agora irremediavelmente ameaçado pelo novo skiline mercantil em construção no mesmo lugar ou se continuará, como uma onda de choque imparável, a desmoronar cidades e vidas longe daquele epicentro. Haverá, ainda, redenção possível depois de tanta ruína?

 

Se, num estado próximo do sonambulismo, W. G. Sebald caminhasse depois do 11-S sobre os mesmos tijolos calcinados, talvez voltasse a dizer: «Demasiados edifícios ruíram, amontoou-se demasiado entulho, são intransponíveis os sedimentos e as moreias» [Os Anéis de Saturno, Teorema, p. 172]. Mas será que o 11-S, nas suas causas e efeitos, constituiu uma cesura radical na narrativa moderna? Ou não terá sido antes mais um episódio de esbanjamento trágico do potencial redentor da humanidade?

 

Foi, seguramente, um regresso ao fundamentalismo religioso incentivado pelo «choque das civilizações» (Samuel Huntington, O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial, Gradiva, 1999) ou «choque dos preconceitos» - como corrigiu Edward Said (Orientalismo, Cotovia, 2004] -, marcado pela tendência para a «teologização do político» e para a «instrumentalização política da religião» [Alain Badiou, Circunstances, Éditions Léo Scheer, 2004] tão presente nos discursos maniqueístas dos protagonistas desta tragédia global. Seja como for, cesura ou continuidade histórica, neste tempo de ebulição catastrófica, ganham adeptos as teorias salvícas que vão hipostasiando um «nós» ocidental contra um Islão desfigurado pela violência fundamentalista, fazendo-nos, assim, roçar um abismo cujo fundo negro desconhecemos.

 

Multiplicam-se, por isso, os discursos que visam a «legibilidade» do 11-S à luz dessas mesmas teorias que conduzem a um perigoso resvalar para territórios de liberdade condicionada no mundo ocidental, refém, sempre, da maldição moderna do petróleo. Eis a retórica dominante na efeméride negra do 11-S, como se o acontecimento apenas pudesse ter «legibilidade» através de um discurso legitimador da resposta americana enviesada, não tanto contra o terrorismo, mas contra um «inimigo providencial» (Carl Schmidt, Théologie politique, Gallimard, 1969), em cujas fileiras se contam já milhares de vítimas inocentes, iraquianas sobretudo, mas também soldados das forças internacionais, enquanto deixa os sequazes de Bin Laden à solta no Afeganistão e no Paquistão. Ou, num sentido oposto, nos discursos negacionistas de uma certa esquerda, anacrónica, e também ela maniqueísta, só que invertendo os pólos do bem e do mal.

 

E qual retórica da literatura sobre o 11-S? Tem sido ela capaz de retraçar o acontecimento dando conta da consternação do «mundo ocidental» pós 11-S? No epicentro da catástrofe, vários escritores americanos publicaram romances sobre a vida depois do 11-S. «Ela falou da torre […] claustrofobicamente, o fumo, os corpos desmembrados, e compreendeu que podiam falar daquelas coisas somente entre eles» - escreve Don DeLillo em Falling Man, um romance circular a várias vozes : a de um sobrevivente do atentado, a de sua mulher e de um terrorista. E Claire Messud, em The Emperor’s Children: «aquele imenso buraco parecia una extensão da sua própria dor». E Jay McInerney, em Good Life. E Jonathan Safran Foer, em Extremely Loud & Incredibly Close/Extremamente alto & incrivelmente perto (Quetzal, 2007).

 

Claro que mesmo nesta literatura estamos, ainda, diante de visões hipostasiadas de um «nós» que exclui os outros, enraizadas na experiência ocidental do acontecimento, visões parciais, portanto, mas que nem por isso deixam de constituir outras formas de retraçar o acontecimento, preferindo a ficção à interpretação, a experiência individual do acontecimento à sua explicação alegórica, a sua subjectivação discursiva à sua «legibilidade» compulsiva, sem cair na tentação didáctica, mas, como cabe à literatura, expondo-nos destinos tiritantes que poderiam ser os nossos, num mundo caminhando alegremente para um «pôr-do-mundo» cada vez mais desvanecido e alheado (Peter Sloterdijk, Alheamento do mundo)

 

João Ventura - Publicado no blog O leitor sem qualidades

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Televisão, jogo, notebook? Não? Um livro a ser lido...será?




As comunidades de leitores

 

Isabel Coutinho

 

O filósofo Pierre Lévy acredita que, no futuro, a grande maioria dos livros será lida em “tablets” ou em aparelhos como o Kindle da Amazon, por causa da “possibilidade de interactividade”. Bob Stein, o director do Institute for the Future of the Book, acredita que a verdadeira transformação está a chegar fora do mercado editorial, principalmente do mundo dos jogos electrónicos.

 

“As editoras terão de seguir este exemplo para aprender como integrar diferentes formas de média -não apenas adicionar fotos, vídeos e áudios aos textos -, e como lidar com comunidades de leitores. A indústria dos jogos já sabe muito bem como fazer isso”, disse ao jornal “O Globo”. Deu como exemplo o jogo on-line “World of Warcraft”, que conseguiu ter mais de 12 milhões de assinaturas por mês. “Talvez o futuro da literatura esteja em autores que criam um mundo a ser habitado pelos leitores, que dentro deste universo escrevem suas próprias histórias”, acrescentou, dizendo que não ficará surpreendido se uma empresa de jogos comprar uma grande editora nos próximos dez anos.

 

Bob Stein tem agora uma nova empresa, a SocialBook Inc, que está a trabalhar na melhor maneira de juntar o mundo dos livros com as comunidades de leitores. Na sua opinião, serão as discussões à volta dos livros que passarão a ter valor e será para ter acesso a isso que os leitores pagarão no futuro. O conteúdo poderá passar a valer muito pouco; as pessoas vão pagar é pelo contexto e pela comunidade à volta desse conteúdo, defende. O Institute for the Future of the Book, de que é director, criou, em 2008, o Golden Notebook Project.

 

Um grupo de sete mulheres (escritoras e jornalistas britânicas e norte-americanas) leu na Internet o livro “The Golden Notebook”, da Nobel da Literatura Doris Lessing; ao mesmo tempo que o lia, colocava notas nas margens. Tudo se passava em ambiente “web”. Quem se ligava ao “site” conseguia ler o que estava nas margens do livro, ter acesso a um blogue e a um fórum de discussão. Bob Stein está agora a preparar novos destes exemplos.

 

A dar importância às comunidades de leitores está também a Amazon, que acaba de abrir a sua loja on-line em Itália (depois de aberturas nos EUA, Reino Unido, Canadá, Alemanha, China, Japão, França) e terá outra no Brasil. Há dias, lançou uma rede social associada ao Kindle, o seu aparelho para leitura de livros electrónicos. Para aceder basta entrar no “site”, fazer uma inscrição e passamos a ter acesso aos nossos livros, às partes sublinhadas e às notas que fomos fazendo durante a leitura. É possível classificar (até cinco estrelas) e fazer recensões, bloqueando ou tornando públicos estes conteúdos. Podemos seguir outros leitores tal como acontece no Twitter e ser seguidos. Os nossos perfis no Twitter e no Facebook podem ser integrados na rede social do Kindle e assim sabemos o que os nossos “amigos” leram, andam a ler ou esperam ler no Kindle.

 

E falta a melhor parte: encontrar novos amigos com base nas obras que fazem parte da nossa biblioteca e das deles.

 

Isabel Coutinho - Publicado no blog Ciberescritas

 

isabel.coutinho@publico.pt

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Quinta-feira, 25.08.11

O ângulo da frase

As coisas mais simples

 

João Ventura

 

Dizem que o poeta tem seis sentidos: “os sentidos, com os seus traços lineares,/ são cinco como os quatro elementos mais/ o éter dos alquimistas. À volta deles anda o sexto/ que nasce da ideia do homem/ de que falta sempre qualquer coisa para atingir/ a perfeição”. O poeta habita uma casa na Mexilhoeira Grande. No quintal do poeta há uma figueira onde ele colhe, ao amanhecer, "os figos de S. João, os primeiros, que se colhem/ com um gesto só, ficando inteiros na mão". Na biblioteca do poeta há um livro de D. H. Lawrence onde este aconselha que se parta “um figo/ em quatro pedaços, para o comer, depois de deitar fora/ a casca”.

 

 

 


 

Mas o poeta que conhece “múltiplas formas de comer um figo” vai mais longe do que Lawrence e pensa também na figueira. Primeiro, os figos - mas poderia ser “a mulher da fotografia avançando até ao fim do molhe”, ou um homem encostado "à porta do palheiro", ou ainda, e sempre, a presença obsessiva do mar, do litoral, ou mesmo a visão das "ruas cheias de gente" de uma cidade qualquer - as coisas mais simples, portanto, como matéria impura que o poeta recolhe dos dias que passam.

 

Depois, “a árvore” que lhe “agarra a alma com os seus ramos ásperos” que o poeta afasta, "a mão transformada num prolongamento da figueira”. A mesma mão com que o poeta traça “o ângulo da frase”, que mostra as coisas mais simples, assim como o seu avesso, ou a sua transcendência, porque “o que é simples também pode ser o/ seu contrário”.

 

A mesma matéria impura que se estilhaça em “mil pedaços pelo chão” como um espelho quebrado da realidade que irrompe no poema, literal e figuradamente, inscrevendo um paradigma narrativo através do qual o prosaico invade o poético. Agora a mão do poeta afasta os ramos da figueira e atravessa a “fronteira de vida rasgada pelas coisas”. Dos mil pedaços em que o espelho partido reflecte as coisas mais simples, solta-se “um sopro metafísico” que empurra o poema ao encontro da sua substância mais profunda e o impede de ganhar “a ferrugem do tempo”. Na casa do poeta cresce o deslumbramento diante de coisas tão simples como os figos do quintal ou “a mulher da fotografia” - o quotidiano irrompendo furtivamente no poema para logo ser desfocado, transfigurado, através da alegoria, do devaneio.

 

O tronco da figueira/ [é agora um] corpo de mulher nua; […] e o figo que o poeta tem na mão [fá-lo] sentir os seus seios macios”; há também a intertextualidade que o poeta convoca desde a sua biblioteca numa busca da essencialidade poética – D. H. Lawrence, Shelley, os poetas gregos. Há um trabalho sobre a história; há navegações errantes, partidas e chegadas, regressos, há um “conceito de paisagem” e uma “imagem da cidade por entre as ruas cheias de gente”.

 

Na casa da Mexilhoeira Grande, Nuno Júdice escreve um livro "à luz do apocalipse,/ as primeiras linhas do ocaso": descrições, narrações, personagens, memórias, odes, uma carta. O livro chama-se As coisas mais simples e foi escrito com os cinco sentidos mais um, aquele que só os verdadeiros poetas têm. Na curva da noite, arrumo as páginas do livro que o poeta escreveu. “Limito-me a deixar tudo no seu lugar" - a figueira, a fotografia, a biblioteca do poeta - "como se nunca aqui tivesse entrado, e volto a sair,/ pela abertura redonda, para a grande praia do poema” onde tudo recomeça.

 

 

 

João Ventura - Publicado no blog O leitor sem qualidades

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Quinta-feira, 19.05.11

A cidade tombada

Jaguarão: Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

 

Alan Dutra de Melo

 

Reveste-se de grande comemoração o anúncio realizado no último dia 03 de maio pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, sobre o tombamento do conjunto histórico e paisagístico do centro urbano da cidade de Jaguarão. É o maior tombamento em número de exemplares protegidos do Estado do Rio Grande do Sul, e este momento é a consagração de um trabalho iniciado na década de 1980, com pessoas da cidade que participaram do Projeto Jaguar em conjunto com professores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pelotas, dentre tantos é necessário destacar a contribuição da Professora Ana Lucia de Oliveira com as conclusões editadas no Programa de Revitalização Integrada de Jaguarão – PRIJ.

 

 

 Convém lembrar também dos primeiros bens tombados na cidade pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Estadual – IPHAE no começo da década de 1990, quando da proteção do Teatro Esperança, Mercado Público, Antigo Fórum e Ruínas da Enfermaria Militar. Mais recentemente o Plano Diretor Participativo da cidade incorporou ao plano uma legislação bastante responsiva com seu patrimônio tanto no eixo da proteção como no estimulo para a preservação através de incentivos fiscais, fruto também dos acúmulos do PRIJ e da compreensão coletiva do sentido da proteção patrimonial para o futuro da cidade.

 

Em Jaguarão contra o patrimônio só ouço falar da falta que fazem poucos exemplares perdidos no centro da cidade utilizados em maior parte para instalação de agências bancárias, assim a população é contra o desaparecimento de seus bens culturais.

 

Mais recentemente o aporte do IPHAN e do Poder Público Municipal tem projetado o patrimônio cultural como fator de desenvolvimento econômico e social, isto começando pela restauração da primeira etapa do Teatro Esperança, e ainda a contratação de projetos de restauros para o Mercado Público e Ruínas da Enfermaria Militar onde será erguido o Centro de Interpretação do Pampa, foram investimentos em obras realizados pelo Governo Federal e em projetos os realizados pela Municipalidade, com aportes próprios e parcerias com o Governo do Estado do Rio Grande do Sul e também da Universidade Federal do Pampa. Aliás, a cidade ocupa a primeira presidência da Associação das Cidades Históricas do RS.

 

 

 

Tal como em Ouro Preto, que de capital do Estado abandonada em Minas Gerais, e após a sua patrimonialização mudou a sua condição com o passar das décadas de investimentos até tornar-se referência cultural, e este hoje é um caminho que se aponta muito claramente para Jaguarão, pois a amálgama entre o turismo de compras existente na cidade vizinha de Río Branco no Uruguai, combinada com atrativos singulares no Brasil como o acervo do Museu Carlos Barbosa, aliados aos projetos contemporâneos projetos pelo Arquiteto Marcelo Ferraz, tanto no Centro de Interpretação como no Mercado e ainda com o aporte gerado pela Unipampa projetam a cidade para o desafio apontado na aula Magna do Curso de Turismo UFPel realizado no último dia 04 de maio no Teatro Guarany, proferida pelo Dr. Mario Beni quando sentenciou: “A Costa Doce tem muitos atrativos e um deles é o patrimônio cultural, mas a questão do patrimônio é que ele tem de ser resignificado”.

 

É neste caminho que Jaguarão avança resignificando seus bens e suas práticas e apostando muito especialmente no poder indutor do patrimônio para o turismo e a cultura, sobretudo quando se aposta e investe todo o seu potencial em novos usos.

 

Alan Dutra de Melo

Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural UNIPAMPA/Jaguarão - RS Brasil

 

Publicado no blog do Jornalista Vaz

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Sexta-feira, 13.05.11

Será ainda possível sonhar este sonho?

A Europa dos cafés

 

João Ventura

 

 

 

 

 

Primeiro, Viena, essa «estação meteorológica do fim do mundo» - como dizia Karl Kraus -, em cujos cafés os homens sem qualidades – afrontavam a vertigem do vazio da era moderna ou se deixavam ir, contemplativos, em «apocalipse alegre», que era a forma como os austríacos viveram nihilismo de fin de siècle). O Café Central, em cujas mesas, nos começos do século, se refugiava o poeta Peter Altenberg para escrever as suas incendiárias parábolas, os seus breves apontamentos sobre instantes de deslumbramento ou de sombra nos quais a vida revela a sua graça ou o seu vazio.

 

Também aqui se vinha sentar Bronstein, aliás Trotski, que, como conta Claudio Magris, em Danúbio, terá suscitado a seguinte reacção de um ministro austríaco à denuncia de preparativos revolucionários em cursos na Rússia: «E quem fará a revolução, na Rússia? talvez esse senhor Bronstein, que passa todo o dia no Café Central?»

 

Não muito longe de dali, em Zurique, conta Enrique Vila-Matas, outro revolucionário sentava-se, também, à mesa do café. «Na manhã seguinte, nevava em Zurique. Saí do hotel com o chapéu de feltro e o meu guarda-chuva, e fui tomar o pequeno almoço ao velho e famoso Café Odeon, de que sempre se disse que Lenine, assíduo cliente daquele estabelecimento, pôde trocar mais de uma palavra com James Joyce, outro cliente habitual. Ah, o Odeon! Lembrei-me que Mata-Hari tinha ali debutado como bailarina. E a seguir imaginei uma cena impossível, imaginei Lenine a beber um café, enquanto lançava olhares furtivos a um exemplar de Gente de Dublin». Fim de tarde em Zurique, neva lá fora, Lenine, à mesa do café, imaginando uma revolução. James Joyce escrevendo a história moral da Irlanda. Mata-Hari ensaiando os primeiros passos na intriga internacional. A presença invisível, ainda, de Goethe, Hermann Hesse, Thomas Mann.

 

A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kirkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. «Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da ideia de Europa», escreve George Steiner no ensaio A ideia da Europa.

 

A Europa dos cafés, lugar de encontro de poetas, escritores, artistas, filósofos, revolucionários, flâneurs. Na Milão de Stendhal, na Veneza de Casanova, na Paris de Baudelaire, o café albergava o que existia de oposição política, de liberalismo clandestino. Odessa: num café do guetto judeu, Isaac Babel põe em movimento os seus gangsters de papel. Copenhaga: Kierkegaard troca a universidade pelos cafés da cidade e lança as bases do existencialismo. Lisboa: no Martinho da Arcada, Pessoa inventa a mais profunda genealogia da literatura portuguesa. Paris: através dos vidros molhados por uma chuva oblíqua Walter Benjamin observa desde o Café de Flore a coreografia de guarda-chuvas correndo apressados no Boulevard Saint Germain: a modernidade a ser pensada no espaço interior de um café para onde se transporta o mundo exterior. Praga: Kafka conversa com o seu amigo amigo Marx Brod no Café Louvre. Budapeste, Deszó Kosztolányi, no Café Sirius, a pedir tinta para escrever, em vez de um café: «- Garçon – dizia – tinta, s´il vous plaît!». Trieste: Claudio Magris desatando o fio de Aridiane - que é o seu livro Danúbio - no Café San Marco, «um verdadeiro café, situado na periferia da História».

 

Este o primeiro axioma que Steiner convoca para pensar uma Europa, hoje, em perda de identidade. Desapareceram, entretanto, os cafés. Os que sobrevivem já não são habitados pela ideia de infinito, mas antes por uma espécie de melancolia generalizada dos europeus, servindo apenas de espelho retro-reflector de um esplendor apropriado à admiração de turistas nostálgicos, refinados ou fetichistas. «Bruxelas é a capital do vazio», escreve Peter Sloterdijk no livro Se a Europa se levanta. A Europa como «laboratório para a experiência do fim do mundo», conforme uma visão completamente apolítica da existência. Em vez dos cafés, os não-lugares sem alma dos centros comerciais. Em vez da conversa mobilizadora à mesa do café, a delegação política em «expertocratas que gerem as coisas por nós, de modo a realizar o projecto de nos tornarmos os últimos homens», como afirmou Sloterdijk. Permanece válida a pergunta de Czeslaw Milosz: «Estes homens de negócios de olhares nulos e sorrisos atrofiados… É a esta vérmina que chegou uma civilização tão delicada, tão complexa?»

 

Em vez do infinito, o consumismo, como se a Europa tivesse perdido para sempre a sua alma faustiana habitada pela ideia de infinito. Assim como se eclipsaram os cafés da «velha» Europa, também a paixão metafísica se evaporou da nova cartografia espiritual europeia. A literatura já não é a grande máquina da modernidade. Quem são, hoje, os herdeiros da Mitteleurope? Quem transporta o fogo de Thomas Mann e de Robert Musil? Na Inglaterra, os grandes escritores são indianos, sul-africanos, ou emigraram para a América. W. G.Sebald já cá não está. A literatura encontra-se numa encruzilhada. Ou é uma literatura ensimesmada, sobre o nada. Ou reporta-se a inutilidades pós-modernas, a representações de consumo enjoado. Para onde vai a Europa herdeira das duas cidades, Atenas e Jerusalém? «Com a queda do marxismo na tirania bárbara e na nulidade económica, perdeu-se um grande sonho de – como Trotsky proclamou - o homem comum seguir as pisadas de Aristóteles e Goethe».

 

Nesta espécie de laboratório do consumismo em que se transformou a Europa, ainda guardamos algumas referências - «a santidade do pormenor diminuto», dizia William Blake - de que é feita a nossa diversidade. Mas cada vez mais somos turistas de nós próprios, consumidores do efémero, perdidos no labirinto do novo Minotauro. Como olhar, então, o touro sem sucumbir ao fascínio do seu olhar que como um espelho restitui à Europa o seu feitiço, levando-a à perdição? Acredita, apesar de tudo, Steiner que «o sonho pode, e deve ser, sonhado novamente. É, porventura, apenas na Europa que as fundações necessárias de literacia e o sentido da vulnerabilidade trágica da condition humaine poderiam constituir-se como base. É entre os filhos frequentemente cansados, divididos e confundidos de Atenas e de Jerusalém que poderíamos regressar à convicção» de que ainda é possível enganar o Minotauro e inverter o ardil a favor da Europa.

 

João Ventura - Publicado no blog O Leitor sem qualidades

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Quarta-feira, 04.05.11

Um museu para o Pampa

Jaguarão é nossa

 

Andrey Rosenthal Schlee - Arquiteto e paisagista

 

O conjunto histórico e paisagístico de Jaguarão e a Ponte Internacional Mauá foram considerados patrimônio do povo brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em reunião realizada hoje, dia 3 de maio de 2011, em Brasília.

 

O parecer favorável ao tombamento foi elaborado e lido pelo conselheiro Luís Phelipe Andres e, ao longo de suas vinte páginas, lembrou daqueles que, ao longo de muitos anos, lutaram pela preservação da cidade (desde o velho “Projeto Jaguar", da década de 80). Mas o momento mais emocionante da reunião foi a homenagem ao jaguarense Aldyr Garcia Schlee e a finalização do parecer com a seguinte citação:

 

"...O Cerro está aqui, alçado sobre suas entranhas de pedras pretas, que uma vez lhe foram arrancadas para calçar a cidade e outra vez foram tiradas das ruas para evitar que o barulho das rodas dos carros perturbassem a pacata vida de ilustres moradores. Sobre o Cerro, além da pedreira velha, está a velha Enfermaria, construída entre 1880 e 1883, e que esteve destinada a atender militares enfermos até transformar-se numa espantosa ruína a se impor na paisagem, desafiando nos seus inquietantes vazios e nos seus imponderáveis desabados nossa memória e nossa imaginação.

 

 

 

A Enfermaria, com os desolados restos de uma fachada de dez janelões e de uma imponente portada central, cercada pelo mistério e pela magia que sua imagem e sua história impõem, como sentinela avançada do pampa – que nunca deixou de ser – depois de injustificáveis anos e anos de abandono, descaso e incúria, está destinada agora a recolher e a difundir nossa memória e nossa imaginação, sendo delas depositária, ao transformar-se num Museu – um novo e renovado, um vivo e revivido, um atual e atualizado, um ativo e atuante museu: o Museu do Pampa. Esse Museu transformará as ruínas da Enfermaria num apropriado lugar de reflexão sobre o pampa – esse mítico espaço onde povos de pastores campeiros desenvolveram sua centenária cultura comum, ligada originalmente à captura e depois à criação extensiva de gado, e que foi traduzida e amalgamada na figura supranacional do gaúcho." .

 

Publicado no blog Bipolar Flexível

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Sexta-feira, 29.04.11

O professor encontra com o escritor

 

Revelações de Aldyr Garcia Schlee

 

 

Abrindo a temporada do projeto itinerante de 2011, a caravana do Encontros com o Professor viajou - pela primeira vez - para Pelotas para a entrevista com o escritor e jornalista Aldyr Garcia Schlee.

 

O mais recente romance de Aldyr Schlee, Don Frutos, lançado em novembro do ano passado, foi o primeiro assunto da conversa entre Ostermann e o entrevistado diante do público que lotou o auditório do Instituto Simões Lopes Neto, em Pelotas. Segundo o autor, o livro foi rejeitado por duas das maiores editoras brasileiras antes de ser publicado pela edições ardotempo. "Meu orgulho é de quem tem a consciência de que os argumentos utilizados pela editoras eram mais do que falsos", declarou. Mas isso não foi motivo para desencorajá-lo. "Minha mulher acha que se o cara não escreve um romance, ele não é bom. Por isso que eu dediquei esse livro a ela. Mas continuo achando que o bom conto é mais difícil de fazer do que o romance", brincou.

 

A obra utiliza o linguajar fronteiriço e narra os derradeiros meses de vida do caudilho uruguaio Don Fructuoso Rivera. No livro, o personagem estacionado por meses em Jaguarão, em regresso à sua pátria depois de prisioneiro em duro exílio no Brasil, assume pela terceira vez o mandato de Presidente da República. "O meu mundo é muito pequeno, ele gira todo em torno de Jaguarão e da fronteira com o Uruguai".

 

Bem-humorado e ácido nas críticas, Schlee comentou as contradições que percebe no Movimento Tradicionalista Gaúcho que, segundo ele, baseia-se numa "tradição que não nasce, que tem que ser criada. O mate [chimarrão] é um traço rico e verdadeiro da cultura pampeana, mas ele não distingue, ele revela a identidade dos que vivem no pampa. Os descendentes os colonos que saíram do pampa e foram para Santa Catarina, Paraná e mesmo outras partes do Rio Grande do Sul, levam o mate e vão nos CTGs. O MTG extrapolou o espaço onde estava sendo desenvolvido e cultivado. O Paixão [Côrtes] e o Barbosa [Lessa] se atiraram como tigres em busca de outros traços além dos que dizem respeito ao pampa".

 

A conversa entre Ostermann, Schlee e o público ainda versou sobre a literatura gaúcha, a camiseta canarinho da Seleção Brasileira de Futebol - da qual Schlee é o criador -, João Simões Lopes Neto, Nelson Rodrigues e sobre as vivências jornalísticas de Schlee nas décadas de 1960 e 1970 . Encerrando o evento, entrevistado e entrevistador tiraram fotos com o público e distribuíram autógrafos.

 

 

 

 

Publicado pelo blog Encontros com o Professor -

Imagem: Divulgacão Album Encontros com o Professor  - Ruy Carlos Ostermann, Marlene R. Schlee e Aldyr G. Schlee

 

 

 

 

 

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Sexta-feira, 22.04.11

"A vida é curta demais para se ler livros ruins"

 

 

O organismo vivo

 

Maria do Rosário Pedreira

 

Conhecem-se mal os editores de outros países, mas muitos têm fama internacional e construíram catálogos e editoras que fizeram ou estão a fazer história. Embora nunca tenha tido grandes relações com editores de língua alemã, sempre ouvi falar de Michael Krüger, poeta, romancista e editor da Hanser, uma das editoras mais literárias em toda a Europa. Num dos seus poemas, sobre a memória, Krüger diz: “Às vezes, a infância manda-me postais”. 

 

Recentemente, li uma entrevista sua e fiquei tocada por este verso e muito do que ali afirmava. Entre outras coisas, que o texto tem vida própria, na medida em que pode ser lido de formas completamente distintas por gente culta, inteligente, burra e ignorante, e pelo facto de os livros durarem para além da vida do autor, com o qual se relacionam apenas porque o seu nome figura na capa. Acrescenta que, como organismos vivos que são, não podemos deixá-los morrer – e que os editores são os únicos que podem velar pela sua vida depois da morte do autor. Mais adiante, depois de confessar nunca publicar um livro com o qual nada aprenda, remata: “A vida de um ser humano é demasiado curta e, por isso, devíamos ler os bons livros que existem”. Confesso que às vezes sinto o mesmo.

 

 

 

 

 

 

Maria do Rosário Pedreira - Publicado em Horas Extraordinárias

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Sábado, 09.04.11

Explosão de estrelas

Breve anotação sobre um tigre

 

Mariana Ianelli

 

Júbilo é uma palavra difícil de viver. Algo raro, tão raro quanto um tigre. Demora para acontecer, mas quando acontece, uma pessoa já não pode mais voltar ao que era antes de ter sentido o que sentiu.

 

Um acontecimento assim é o que excita um poeta a meter-se no escuro, procurando. Porque se existe um lugar além de um templo na Tailândia onde ainda hoje esse tigre passeia livre, longe de armadilhas, esse lugar é um poema. Precisa de silêncio para existir, por isso é tão raro o júbilo.

 

Não é algo que se possa dizer, é algo para ser sentido. Precisa de um tempo que perdure e, sobre esse tempo, um poema não mente. Não importa quantos dias sejam necessários trabalhando, vagando à procura, o tempo do poema depende do fulgor de um momento e esse momento depende de uma vida. Pretender tomá-lo à força, além de inútil, seria ridículo. Pode estar próximo e cada vez mais próximo, pode se fazer pressentir numa pausa do vento, num prólogo de bonança, e ainda assim não é certo que venha. Um júbilo não se compreende, é-se compreendido por ele, envolvido por ele, abraçado, possuído.

 

Traçar um plano de busca, estudar um provável cruzamento de rotas para encontrar esse animal rajado seria perder a explosão de estrelas que existe em ser por ele surpreendido numa estreita passagem. Procurá-lo pede um pensamento vago, qualquer coisa de desejo distraído, um devaneio sem pretensão de eficácia, sem meta a ser atingida, a sugestão de que está bem como está, o júbilo venha ou não venha.

 

É procurar indefinidamente até que chegue esse momento, um momento de presença, esse instante puro de descobrimento em que o poema diz amor e o amor é feito. Entra no poema quem entra nesse bosque sem palavra, nesse erotismo de uma comunicação profunda. Mas tudo o que se fala sobre o júbilo sempre é pouco, muito pouco fora do seu acontecimento. O júbilo acontece livre e no silêncio. É uma alegria rara, que perdura, um prazer de melodia quando irrompe, quando arrebata e transverbera um corpo. Não se pode apanhá-lo numa palavra. E mesmo que ficasse preso, que fosse agarrado, absurdamente enredado numa armadilha, já não seria júbilo, seria só um animal triste.

 

 

 

 

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

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Anonimato como estratégia para a fama

 

Sobre um escritor que fugiu mesmo da fama

 

José Mário Silva

 

Eis o texto que li na primeira mesa do FLM (Os escritores que fogem da fama), sem uma breve introdução que isolarei daqui a nada num outro post: Ainda em Lisboa, anotei no meu moleskine meia dúzia de ideias gerais sobre o tema desta mesa e pensava improvisar à volta delas até perfazer os 15 minutos da praxe e passar a palavra a outra pessoa da mesa. Acontece que ontem à tarde, depois da abertura solene do festival, fui abordado por uma jornalista de rádio que me pediu para explicar, em dois minutos, o que tinha para vos dizer aqui agora. Eu caí no erro de lhe fazer a vontade. E depois percebi que aquelas generalidades são isso mesmo, generalidades, factos ao alcance de quem tenha uma ligação wireless e a Wikipedia nos favoritos do browser.

 

À noite, quando voltei ao quarto, depois de uma poncha de maracujá bebida à porta de um bar no centro do Funchal, enquanto um professor de Filosofia me alertava para a importância de ouvir o «toque de caixa» das coisas essenciais da vida; depois de regressar ao quarto, debruçado na varanda a olhar de cima para a rosa dos ventos junto às águas e para o vulto escuro daquele rochedo que parece ter sido plantado ali, no meio do mar, para nosso deleite contemplativo, decidi ignorar as notas do moleskine e sentar-me ao computador a escrever este texto. E sobre o que haveria eu de vos falar, para fugir às generalidades wikipédicas? Pois bem, não sobre os escritores que fogem da fama, em abstracto, mas sobre um escritor em particular, talvez o único escritor que verdadeiramente fugiu da fama. Ele é madeirense, tem 80 anos e… não, não se chama Herberto Helder.

 

Chama-se Aurelino Sousa Gomes. E se nunca ouviram falar dele é porque, ao contrário de outros escritores que supostamente fogem da fama (como Herberto Helder), ele levou essa fuga mesmo a sério. Tão a sério que não correu riscos e preferiu não publicar nada de nada. Há quem não publique porque não consegue. Aurelino Sousa Gomes não publicou porque não quis.

 

Fonte segura garante-me que Enrique Vila-Matas tencionava falar dele na primeira versão de Bartleby & Companhia, esse hino aos escritores do Não, aos escritores que se recusam a escrever, mas Aurelino, ao saber das intenções de Vila-Matas, terá viajado no seu FIAT 600 de cor creme até Barcelona, onde, à porta de uma estação de Correios, ameaçou de porrada o escritor catalão. Embora Aurelino fosse um homem já com quase 70 anos, enxuto e vigoroso mas frágil de ossos e sujeito a ser derrubado com um simples empurrão, a ameaça parece ter resultado, porque no livro de Vila-Matas não há uma só referência a Sousa Gomes, embora não faltem histórias sobre outros membros da confraria bartlebiana, como Juan Rulfo, Robert Walser, Daniele Del Giudice, Joseph Joubert, J. D. Salinger ou Julien Gracq – tudo nomes, diga-se, que eu trouxera de Lisboa anotados no moleskine.

 

O que torna singular a figura de Aurelino Sousa Gomes não é a sua recusa em publicar, ou sequer a sua recusa em escrever uma única frase (há outros casos de escritores que nunca escreveram uma única frase). O que o torna singular é o facto de as frases que nunca escreveu, os textos que nunca publicou, os livros que nunca editou, serem todos sobre um único assunto: precisamente o da relação dos escritores com a fama e as estratégias para lidar com ela. Ou seja, o tema desta sessão. Devo explicar que conheço Aurelino Sousa Gomes desde sempre.

 

Ele foi um grande amigo do meu avô paterno, o meu avô Mário, que tinha uma fábrica de cortiça e apreciava viajar pela Europa, com amigos, atrás do Benfica de Eusébio e Coluna, apesar de ser do Belenenses e no fundo não gostar por aí além de futebol. Ele gostava era da viagem, do estar com aqueles amigos estrada fora, das noites de comezaina e das idas aos casinos que surgiam entre Lisboa e as cidades onde o SLB disputava finais europeias. O meu avô terá conhecido Sousa Gomes numa dessas viagens e o que os aproximou, suspeito, foi o absoluto desinteresse do meu avô pela literatura. Seja como for, recordo-me de ver Aurelino no escritório da fábrica de cortiça, evocando uma qualquer aventura rodoviária ou gastronómica nos arredores de Zurique. O meu avô era uns dez anos mais velho e, para picar Aurelino, chamava-lhe “O Escritor. Ele ficava todo indignado, enrubescia de raiva fingida, e depois íamos todos comer doses industriais de cozido à portuguesa, a que o meu avô sempre pedia para acrescentar, num pratinho, uma dose extra de chouriço preto.

 

Muitos anos mais tarde, quando eu já estava mergulhado em literatura e começava rabiscar os meus primeiros versos, fui com o meu avô ao hospital visitar Aurelino. Ele estava todo partido porque caíra numa ribanceira ou por umas escadas abaixo, já não sei bem, e o meu avô, que não tinha paciência nem conversa para estar tardes inteiras ao pé de um homem engessado, pediu-me que fosse duas vezes por semana falar com Aurelino. O meu avô oferecera-me há pouco tempo o meu primeiro carro, um 2CV branco que ainda hoje lembro com saudade, pelo que não fui capaz de lhe dizer que não. Durante dois meses, fui a principal visita de Aurelino e ouvi atentamente as suas ideias.

 

Segundo Sousa Gomes, os escritores que fogem da fama só o fazem por uma razão: para se tornarem famosos. A forma como se ocultam, como desaparecem de circulação, como escapam do escrutínio público, mais não é do que uma estratégia inteligentíssima para criar uma curiosidade que eles sabem que perdurará. São lendas? Claro, mas lendas criadas por eles mesmos. São mitos? Sim, mas mitos criados por eles próprios. Por natureza, a fama é efémera, cíclica, fugaz. Quem se dá a conhecer, dá-se a esquecer. A única fama que resiste é a fama que se recusa, a fama que se desdenha. Quando Greta Garbo disse "I want to be alone", no fundo sabia que nunca mais deixaria de estar acompanhada. Em suma, não há escritor que procure mais a fama do que o escritor que foge dela.

 

Era este o conceito central do livro que Sousa Gomes nunca escreveu, mas do qual me falou longamente durante aquela complicada convalescença. Passaram-se os anos e nunca mais ouvi falar de Sousa Gomes. Ontem à noite, na varanda, enquanto olhava para o vulto negro do rochedo que parece ter sido plantado ali, no meio do mar, para nosso deleite contemplativo, pensei que quem devia estar aqui a falar-vos disto tudo não era eu, era Sousa Gomes, o único escritor que fugiu mesmo da fama, sem segundas intenções. O único que fugiu tanto da fama que ninguém sabe quem é, ninguém sabe sequer se existe ou existiu. Infelizmente, não sei onde está Sousa Gomes, nem sei se ainda é vivo. A última vez que estive com ele, talvez em 2004, foi à saída do hospital, ele ainda meio trôpego e dobrado sobre si mesmo, impecavelmente bem vestido, o rosto vincado pela melancolia como o de um general romano depois de assistir à derrota das suas legiões.

 

Há pouco, no meio do público, julguei ver esse rosto tão nobre. Mas deve ter sido ilusão. Se não foi ilusão, por favor, não me deixem sozinho no fim desta mesa redonda, porque nesse caso tenho a certeza que Sousa Gomes deve estar lá fora, à minha espera, pronto a dar-me os socos e pontapés a que poupou, há cerca de dez anos, em Barcelona, um assustado Enrique Vila-Matas.

 

 

José Mário Silva - Publicado no blog Bibliotecário de Babel

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Quinta-feira, 07.04.11

As pedras do rio

Sem medo de Virginia Woolf

 

João Ventura

 

Há 70 anos, numa dia como o de hoje, uma mulher ainda jovem, magra, branca, feminil, caminha solitária na margem do rio perto da sua casa na aldeia de Rodmell, em Sussex, onde se tinha refugiado com o seu marido Leonard fugindo aos bombardeamentos alemães sobre Londres. E enquanto vai pisando a areia grossa da margem, vai colhendo com as suas longas mãos de louca tranquila, como se flores fossem, as pedras com que vai enchendo os bolsos do casaco. Desliza, depois, rio adentro, deixando-se abraçar pelas águas profundas do rio, para, finalmente, escapar ao medo.

 

 

 

 

Quem assim entrou no suicídio, com medo de viver, foi Virginia Woolf, a romancista inglesa que gostava de passear nas margens da vida sob um céu sombrio e triste, e que, fosse em Londres, na velha mansão de família no bairro de Bloomsbury, fosse na casa perdida na paisagem verde negrejante de Sussex, num e noutro lugar sempre rodeada de enfermeiras, de malas para partir e regressar, de festas e convidados, escreveu romances, contos, ensaios, cartas e diários, antecipando-se a James Joyce no modo de forjar o monólogo interior e a polifonia de vozes que murmuravam tanto nos textos que escrevia como na sua mente bipolar.

 

Por isso, não ter medo de ler Virginia Woolf, que numa época de moral vitoriana vestia calças de homem, era sufragista, fumava em público cigarros egípcios, dava conferências em círculos operários e, como se isto não bastasse para fazer dela alguém desajustado aos olhos da sociedade, ter, também, mantido uma relação lésbica com a sua amiga Vita Sackville West, poeta e mulher de um lord. O seu fim foi coerente com a sua existência inconformista e radical.

 

Depois de uma noite sem bombardeamentos nazis, o dia 28 de Março amanheceu luminoso, transparente, frio. Antes de sair em direcção ao rio, Virginia ainda roubou à morte as três derradeiras cartas dirigidas a Leonard e à sua irmã Vanessa. Depois, tranquilamente, deixou-se abraçar pelas águas para não mais voltar a ver a claridade do dia. Vinte dias depois, um grupo de crianças haveria de encontrar o seu corpo numa das margens do rio Ouse.

 

Talvez naquele 28 de março, temendo voltar a sofrer uma crise de loucura e não poder suportá-la, a alma de Virginia tenha, finalmente, decidido não mais afrontar o inafrontável. Essa realidade intangível que se nunca chegou a compreender nem mesmo através da sua obra.

 

João Ventura - Publicado no dia 28 de março no blog O leitor sem qualidades

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Sexta-feira, 25.03.11

Visita aos quintais e carnavais

Gossips, gossips

 

 

 

 

Depois de deixar nosso país, o Air Force One aterrisou além-Andes, no Chile. Lá, como aqui, os irmãos do norte foram recepcionados pelas mais altas autoridades, incluindo a ex-presidente Michelle Bachelet. Ao se aproximar de sua velha conhecida, Obama, malandrinho dos morros do Alabama, não se furtou a um chiste e lascou:

 

- E aê? Senta aqui no Colo Colo do pai véio!

 

Os risos foram gerais. O cara sabe quebrar o gelo.

 

Mais tarde, a família do Tio Sam foi levada a conhecer o local onde, no ano passado, foi realizado o histórico resgate dos mineiros. Michelle Obama, como boa mãe que é, mostrou-se muito preocupada durante a visita. Quando suas filhas brincavam de pegar, correndo na volta, tratou de alertá-las:

 

- Olha aí, não vão me cair na porra desse buraco!

 

Adios, Bolívia!

 

Ao se despedir do Brasil, a patroa do "homem mais poderoso do mundo" não se fez de rogada. Como não ganhou de presente uma camiseta do Flamengo, meteu no corpinho sarado um vestido com as cores do Veranópolis Esporte Clube - o pentacolor da terra da longevidade.

Grande sacada!

 

Publicado no blog  Bipolar Flexível

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Terça-feira, 22.02.11

Aniversário do Blog

TRÊS ANOS

 

Hoje o blog completa três anos de atividades - um ou outro dia não se colocou um artigo, um texto ou uma imagem de obra de arte. Essas ausências foram raras e estão no calendário do blog. Aqui estão colocados 2.250 posts, incluindo-se este - o contador de visitas foi instalado mais de um ano depois de seu início, portanto foram mais de 250.000 visitantes e leitores do blog no período dos três anos. Agradeço profundamente a presença constante (ou ocasional) de todos e espero que o blog tenha sido divertido e tenha revelado algo de novo em algum de seus posts, em algum momento. Agradeço também igualmente as colaborações de artistas, fotógrafos, poetas, escritores e de tantos que apoiaram o blog durante todo esse tempo. Agradeço aos amigos e leitores portugueses que estabeleceram este vínculo e fortaleceram com palavras e atitudes este contato cotidiano. Deste blog nasceram amizades, exposições, edições de livros, uma editora de livros em papel, recuperações preciosas e muitas ideias.

 

Muito obrigado a todos. A vida continua. O blog continua no seu dia após dia, recatadamente, sem alaridos.

 

 

 

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Terça-feira, 15.02.11

Negros fantasmas esfumados em papel

Escritores na sombra


Maria do Rosário Pedreira


 

Tenho um amigo escritor (de grande qualidade, é bom que se diga) que, no seu país, e quando era mais jovem, escreveu a autobiografia de outra pessoa – o presidente de um grande clube de futebol. Calculo que lhe tenha feito algumas entrevistas e lido o bastante a seu respeito – e a verdade é que o homem se reviu no que leu como se tivesse sido ele próprio a redigir o texto (parece que só o título do livro é da sua autoria).

 

Conheço outra pessoa que vive de escrever livros alheios, mas não escreve os seus – e tão-pouco quer que o seu nome apareça sequer como colaborador ou redactor na ficha técnica, mesmo quando lho sugerem; talvez, no seu íntimo, esteja convencido de que um dia ainda há-de escrever alguma coisa que valha a pena e não queira que os leitores identifiquem o seu nome com obras que julga menores (mesmo se escritas pela sua mão).

 

Sei que existem muitos escritores na sombra neste momento em todo o mundo – e Portugal não é excepção – e pergunto-me o que sentirão quando vêem os seus textos serem publicados com a assinatura de outra pessoa. Claro que, nestes casos, a discrição é a alma do negócio e nunca se acusarão, mas não terão pena de que, como acontece nos EUA, o seu nome não apareça na capa debaixo do do (falso) autor? E não gostariam de ocupar o tempo a escrever outras coisas, que pudessem assinar e publicar, em vez daquelas? E, quando um desses livros vende às pazadas, não pensarão no que poderiam ter ganho se fossem (e são) os seus verdadeiros autores? E como serão as pessoas que aceitam ficar com os louros (e o dinheiro) dos que assim trabalham?


Maria do Rosário Pedreira - Publicado no blog Horas Extraordinárias

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Domingo, 13.02.11

Chocolate

Palavras mágicas


Maria do Rosário Pedreira


Há muitos anos, fui contactada por uma agência de publicidade para lá ir dizer o que esperava de uma pasta de dentes. Compareci no dia combinado e fiquei eu própria surpreendida com a quantidade de coisas que consegui verbalizar sobre uma matéria aparentemente comezinha como aquela. Não era a única pessoa presente, claro, e essa circunstância acabou por desencadear um diálogo de mais de uma hora à volta do tema "dentífricos", com intervenções memoráveis sobre cor, sabor, textura, embalagem, preço e ecologia. Mais tarde, explicaram-me que aquela reunião era parte daquilo a que se chama um "estudo de mercado" e que, quando uma agência quer lançar um produto, tem de saber o que os clientes exigem e desejam para construir a campanha em consonância.

 

 

 

Ora, o sucesso de um livro é sempre uma incógnita e, para os livros, não há realmente estudos de mercado possíveis (por isso nos zangamos quando chamam "produtos" aos livros). E, no entanto, parecem existir palavras mágicas que conduzem quase sempre ao êxito. A melhor que conheço é "chocolate" e, se um título a inclui, é quase certo que o livro se vai vender bem. O romance Chocolate – que depois deu um filme menor com a admirável Juliette Binoche – tirou Joanne Harris do anonimato e transportou-a para um estrelato que se calhar nem merecia, e o Baunilha e Chocolate de Sveva Casati Modignani pô-la a vender de repente milhares de exemplares num país onde os escritores italianos raramente vingam...


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Sexta-feira, 04.02.11

Dia 22 de fevereiro - três anos de blog

A pensar...


 

2.250 artigos (o que foi possível fazer), 250.000 visitantes (pouco, muito pouco...), 8 livros publicados, 4 prêmios de literatura (nenhum deles é o Portugal Telecom nem o Jabuti, certames aos quais já não se concorrerá mais), 15 livros a publicar em 2011, 1 livro a escrever (sem data para terminar), 10 exposições no período passado, 5 exposições a realizar em 2011, uma individual de pintura (Apenas Pintura), ausência de apoio de divulgação ao blog, freio no facebook, é necessário pensar...

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Quinta-feira, 03.02.11

As solicitações de apoios e de patrocínios

Os patos de Sophia


Maria do Rosário Pedreira


Este vai ser o ano de Sophia de Mello Breyner (em Portugal) e as comemorações iniciaram-se com a entrega do seu espólio à Biblioteca Nacional. Os jornais divulgaram bastante o acontecimento e um deles revelou uma história genial que os filhos quiseram partilhar com os presentes na cerimónia e que também eu não resisto a partilhar com os leitores deste blogue. Ao que parece, terão dado um dia a Sophia dois patinhos amorosos, a que ela achou imensa graça – enquanto foram pequeninos, claro, porque entretanto cresceram e ela ficou sem saber o que fazer com eles.

 

 

 

 


Como mulher pragmática que era, telefonou mesmo assim para o então presidente da Gulbenkian, Azeredo Perdigão, propondo-lhe a oferta dos ditos patos para os belíssimos jardins da Fundação. O senhor não terá achado o facto estranho, porque marcou um dia para a entrega, convidando inclusivamente a poeta para almoçar com ele.


Sophia compareceu na data e hora marcadas com os seus patos (que, claro, ficaram a fazer parte da fauna gulbenkiana a partir desse dia) e, durante o almoço, ficou muito surpreendida quando Azeredo Perdigão a presenteou com uma medalha, tendo indagado o porquê de tal distinção (pareceu-lhe que a oferta dos patos, por certo, não o justificava). Foi nesse momento que Azeredo Perdigão lhe explicou que era a primeira vez que alguém vinha dar alguma coisa à Gulbenkian, porque normalmente só vinham pedir...


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Terça-feira, 01.02.11

Os prêmios

 

Romain Gary: O escritor que recebeu o Goncourt duas vezes


Isabel Coutinho


Trinta anos depois da morte do escritor, sai finalmente em Portugal “Uma Vida à Sua Frente”, o livro que Romain Gary assinou como Émile Ajar para poder ganhar, violando as regras, o seu segundo Prémio Goncourt. Ao mesmo tempo, em Paris, uma exposição conta a história de um dos maiores embustes do mundo literário. Por Isabel Coutinho

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

No dia 17 de Novembro de 1975, o júri do mais importante prémio literário francês reuniu-se e, à oitava ronda, atribuiu o Prémio Goncourt ao senhor Émile Ajar pelo seu romance “La Vie Devant Soi”. Na altura, os jornalistas perguntaram insistentemente se o júri não se tinha sentido pouco à vontade por estar a atribuir o prémio a um “autor desconhecido”. Poucos tinham visto Émile Ajar em carne e osso. Do escritor havia apenas uma fotografia um homem de cabelos ao vento em frente ao mar e sabia-se que tinha escrito, também sob pseudónimo, “Gros-Câlin”, o seu primeiro romance.


O júri não deu importância a estes pormenores e foi assim que, sem ninguém saber, Romain Gary (1914-1980) se tornou no único escritor a ganhar duas vezes o Goncourt, um prémio que, estipula o regulamento, só se pode receber uma vez na vida. O escritor francês já tinha recebido o prémio literário em 1956, pelo romance “As Raízes do Céu”, e voltava agora a ser escolhido com este livro. Só se soube a verdade seis meses depois da sua morte. A história narrada por Momo, um adolescente muçulmano de 14 anos que vive no bairro de Belleville, em Paris, na casa de Madame Rosa, uma prostituta reformada e sobrevivente de Auschwitz, é esta semana publicada, pela primeira vez em Portugal, numa edição da Sextante. Foi adaptado para cinema, por Moshé Mizrahi, com Simone Signoret a interpretar Madame Rosa.


Romain Gary arquitectou tudo. Teve atenção aos pormenores para que ninguém suspeitasse de que era ele quem estava por trás de Émile Ajar. Arranjou um cúmplice, contratou advogados e mentiu com os dentes todos, até aos amigos mais íntimos. Antes de se suicidar com um tiro, deixou indicações ao seu filho e ao editor para que o manuscrito “Vie et Mort d’Émile Ajar” fosse publicado postumamente.


Nessas dezenas de páginas, o escritor que nasceu em Vilnius, na Lituânia, filho de russos judeus, e viveu em França, com a mãe, desde os 14 anos, torna pública a falcatrua. “Diverti-me muito. Adeus e obrigado”: assim termina o livro onde conta como engendrou um dos maiores embustes do mundo literário.


O escritor – que começou por ser aviador e herói de guerra, fez carreira diplomática na Bulgária, em França, na Suíça e nos EUA, e foi cineasta, jornalista e actor revela aí que a sua principal motivação foi mostrar que os críticos literários franceses eram tolos. Em “Romain Gary: a Tall Story”, biografia publicada no final do ano passado, David Bellos afirma que o escritor estaria farto de ser cataloga do e desrespeitado pelos críticos. “Ele queria provar ao mundo que os jornalistas e os editores são preguiçosos, não lêem os textos que criticam ou os livros que sugerem, e apoiam-se em preconceitos e fofocas para formarem as opiniões que impõem à comunidade”, escreve o autor, professor de francês e de literatura comparada da Universidade de Princeton.


Na verdade, só depois de ter acabado de escrever “Gros-Câlin” é que Romain Gary decidiu publicá-lo com outro nome. Sentia que era muito diferente das suas obras anteriores. O romance é quase um diário de um homem que vive com uma serpente pitão num apartamento em Paris e tem uma linguagem considerada inovadora.


Foi assim que tudo começouComo é que Romain Gary conseguiu levar avante, e sem que ninguém suspeitasse, um dos maiores embustes do mundo literário? Primeiro precisou de convencer o seu amigo Pierre Michaut, um homem de negócios que vivia no Brasil, a entrar no jogo. Ele aceitou e, numa das suas visitas a Paris, dirigiu-se ao escritório do editor Robert Gallimard com o manuscrito de “Gros-Câlin” debaixo do braço.


Contou-lhe que estava ali em nome de um francês que vivia no Rio de Janeiro. Por razões legais, esse exilado não podia usar o nome verdadeiro nem regressar a França. O editor, conta David Bellos na biografia, leu duas páginas e enviou o livro para apreciação. No dia seguinte recebeu um convite para ir a casa de Romain Gary. Quando lá chegou, encontrou o escritor com um homem que lhe parecia familiar. “Não o estás a conhecer?”, perguntou-lhe Gary. Robert Gallimard percebeu a marosca.


Não me digas que me pregaste esta partida…”, disse. Romain Gary obrigou-o a jurar que não contaria o segredo a ninguém. O editor cumpriu a promessa, bem como o pequeno grupo que sabia que era Gary o verdadeiro Émile Ajar: a secretária que dactilografava os textos, a sua ex-mulher e mãe do seu filho, a actriz Jean Seberg, os advogados, e o seu primo Paul Pavlowitch, que terá um papel fundamental nesta história.


Apesar de a primeira leitora de “Gros-Câlin” ter dado uma apreciação muito positiva, os editores que o leram a seguir não ficaram tão entusiasmados.

 

Conta David Bellos que o escritor Raymond Queneau, que fazia parte do painel de leitura, disse que o autor devia ser um chato mas tinha talento. Aconselhava que o livro fosse publicado na Mercure de France, uma filial da Gallimard.


Quando o livro foi publicado, os críticos literários tentaram descobrir quem era o autor por trás do pseudónimo.


Nunca suspeitaram de Romain Gary, que nesse ano publica “La Nuit Sera Calme”, onde responde às perguntas de um seu amigo de adolescência, o jornalista François Bondy.


Para que tudo corresse bem com o pseudónimo, o escritor não assinou os contratos com a editora e, receando a curiosidade dos jornalistas, pediu ao primo Pavlowitch que se envolvesse na história fazendo-se passar por Émile Ajar. O plano: viajar para o Rio de Janeiro e aí encarnar a personagem de Émile Raja, um médico francês que, acusado da prática de abortos clandestinos, teria saído de França e adoptado o sobrenome Ajar como pseudónimo literário. A viagem nunca chegou a acontecer.


A mentira continua. Quando começou a correr o rumor de que “Gros-Câlin” poderia ser candidato ao Prémio Renaudot (atribuído a primeiras obras), Robert Gallimard avisa Romain Gary de que ele poderia meter-se em apuros. O escritor deu instruções ao advogado para que o livro fosse retirado das listas de todos os prémios a atribuir em 1974.


Mas, com o livro nas livrarias, Émile Ajar teve de aparecer e por isso Paul Pavlowitch deu uma entrevista ao “Le Monde”. A sua fotografia sai nos jornais. Entusiasmado com o sucesso, Romain Gary começa a escrever o segundo livro. Trabalhava de manhã na obra de Émile Ajar e de tarde na obra de Romain Gary. Em Outubro, publica “Uma Vida à Sua Frente”, que teve como primeiro título “La Tendresse des Pierres”. Quando a capa do livro já estava a ser impressa, a mulher de Pavlowitch repara que o título é igual àquele que uma personagem de um romance anterior de Gary dava ao livro que estava a escrever. Antes que alguém notasse a coincidência, Émile/ Paul Pavlowitch pediu ao editor para parar a impressão.


Mas o pior estava para vir. A 17 de Novembro de 1975, “Uma Vida à Sua Frente” recebe o Goncourt. Se alguém descobrisse que o romance era de um escritor que já tinha vencido o prémio, Romain Gary seria preso. Por isso, três dias depois, Émile Ajar faz saber que recusa o prémio.


O júri responde que “o Goncourt é como a vida e como a morte não se aceita nem se recusa”. Entretanto, um jornalista consegue, através da fotografia que circulara nos jornais, perceber que Émile Ajar era Paul Pavlowitch, primo de Romain Gary, e publica a história. Tudo é posto em causa. Gary é forçado a dizer publicamente que não ajudou o primo a escrever o livro e que não tem nada a ver com Émile Ajar. Nunca mais poderá contar a verdade, e portanto começa a escrever “Pseudo”, livro em que Émile Ajar conta como Paul Pavlowitch, internado numa clínica psiquiátrica, escreveu os seus livros. A mentira continua.

 

 

 

O último livro assinado por Émile Ajar, “L’Angoisse du Roi Salomon”, é publicado em 1979. No ano seguinte, aos 66, Romain Gary suicida-se na sua casa em Paris: “Fiz um pacto com o senhor lá de cima, vocês conhecem-no? Fiz um pacto com ele de forma a nunca me deixar envelhecer.” A sua ex-mulher, Jean Seberg, tinha aparecido morta no ano anterior. “Nenhuma ligação”, escreve na nota de suicídio que deixou.


Seis meses depois, em 1981, é revelada a verdadeira identidade de Émile Ajar. Paul Pavlowitch publica “L’Homme que l’On Croyait”, onde conta a sua versão da história. É entrevistado no programa “Apostrophes”, de Bernard Pivot. Pouco depois, é publicado o manuscrito “La Vie et Mort d’ Émile Ajar”, onde Romain conta que a jornalista Laure Boulay, do “Paris Match”, lhe disse a certa altura que estava convencida de que Romain Gary e Émile Ajar eram a mesma pessoa.

 

Romain Gary apaixonou-se perdidamente por ela e respondeu: “É evidente. Ninguém se apercebeu a que ponto Ajar foi influenciado por mim. Podemos até falar de um verdadeiro plágio. Mas enfim, é um jovem autor. Não faço questão de protestar.” Esta história mirabolante volta agora a ser contada, 30 anos depois da morte do escritor, no Musée des Lettres et Manuscrits, em Paris. Até 3 de Abril, a exposição “Romain Gary, des Racines du Ciel’ à ‘La Vie Devant Soi’” mostra os manuscritos, as cartas, as notas, as fotografias e os artigos de imprensa que reconstituem o grande golpe.


Isabel Coutinho - Publicado no Caderno Ípsilon, do PÚBLICO / Ciberescritas

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Domingo, 23.01.11

"O que fazer quanto tudo arde?"

 

Pôr o pensamento a pensar

 

João Ventura

 

“Nesta grande época” - como o polemista vienense Karl Kraus se referiu à sua num texto profético por si mesmo lido a 19 de Novembro de 1914 em que exprime a tentação do silêncio contra a degradação da linguagem transformada e prostituída ao serviço de inconfessados interesses mercantis - há um excesso de «fraseologia» que nos é proposta como “opinião”. E essa “opinião”, à força de ser repetida até à exaustão pelos homens da palavra fácil nos mais diversos media, fez-nos esquecer que o seu significado original correspondia a algo muito próximo daquilo a que os gregos chamavam doxa, e que se opõe, portanto, ao pensamento.

 

Neste sentido, os debates, as mesas-redondas, os frente-a-frente que “nesta grande época” de crise (e por estes dias de campanha eleitoral) nos são propostos, raramente expressam a heterodoxia, pois a ideia de uma opinião heterodoxa é em si mesma uma contradição semântica, já que, apenas o pensamento, e nunca a retórica servil e conforme à doxa do momento, pode ser heterodoxo.

 

Pode, então, o pensamento voltar a pensar? E o que é o pensamento?

 

Pensar é uma forma de agudização, a forma mais intensa de discernimento, isto é de expressar um sentimento. Por isso, o pensamento e a linguagem que o expressa, embora objectivos, nunca são emocionalmente neutros. Já Kant dizia que quando se entregava a uma tarefa fazia-o todo o seu calor. E é isso que nos distingue dos répteis que são frios.

 

Assim, pensar, hoje, com calor, é discernir outras possibilidades para o mundo. Isto é, encontrar cesuras, fendas no pensamento totalitário que rege quer o politicamente correcto quer os fundamentalismos de todo o tipo que marcam a experiência contemporânea, aprisionando um pensamento que parece já não ser capaz de pensar emocionalmente o mundo, incapaz de retraçar as figuras que a história vai arquivando. Caídos na imanência dos dias que correm acomodamo-nos aos lugares fixos, somos cada vez mais espectadores indiferentes, contempladores insensíveis de um mundo sem remissão, de onde a política, contra todas as aparências, parece ter desertado. O primado da economia sobre tudo o resto é uma consequência do niilismo moderno que aprisionou os homens no labirinto do mercado.

 

O torvelinho da técnica, irmã da economia, tudo arrasta no seu vórtice, originando novas patologias de posição, desenraizadas, transitórias, etéreas. A política há muito que deixou de ser um caminho para a paz e a plenitude para se transformar numa estratégia guerreira de ascensão ao poder. O ambiente enlouqueceu perante a obscena indiferença do mundo. “Que fazer quando tudo arde?”, como pergunta António Lobo Antunes num romance homónimo. Talvez “pôr o pensamento a pensar”, desenhando mapas e contra mapas do porvir do mundo. Talvez, sermos heterodoxos.

 

 

 

 

 

João Ventura - Publicado no blog O leitor sem qualidades

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Quarta-feira, 19.01.11

Letras sobre papel

A escrita dos livros


João Ventura


Como escrevem os escritores? Por que territórios da escrita se aventuram para deixar visíveis os rastos no papel? E a que instrumentos recorrem para gravar a consternação do mundo?


Primeiro, há a página em branco que é a praia onde se derrama a escrita. E que pode ser, também, a figura atrás da qual se escondem os rostos dos escritores. Muitos escrevem na banal folha A4 espécie de praia comum e sem surpresas, pronta a ser apagada pela subida da maré, que é como quem diz, a ser jogada no cesto dos papéis sempre que a corrente da escrita segue um curso diferente daquele que o escritor procura.


Mas a praia, qualquer praia de papel, nunca é virgem, a areia da página já foi percorrida de uma ou outra maneira e a sua geografia condiciona a inscrição da escrita. A lápis, com caneta de tinta permanente, com esferográfica ou, mecanicamente, utilizando a máquina de escrever, ou a tecnologia do computador, o suporte da escrita condiciona a sua inscrição.


Heidegger desconfiava da técnica, da máquina de escrever: “A máquina de escrever arrranca a escrita ao domínio essencial da mão, ou seja, da palavra”. Outros evocam a máquina de escrever como instrumento de escrita a contra-relógio. “Veio-me à memória um [filme] onde um escritor que não tinha dinheiro encontrava o lugar ideal para escrever, a sala de dactilografia da cave biblioteca da Universidade de Austin. Ali, em filas ordenadas, havia uma dúzia de velhas Remington ou Underwood que se alugavam por dez centavos a meia hora. O escritor metia a moeda, o relógio começava o seu tiquetaque enlouquecido, e o escritor punha-se a escrever como um selvagem para acabar o seu conto antes que o tempo se esgotasse” (in Doutor Pasavento, Enrique Vila-Matas). Nesse tempo havia ainda alguma intimidade entre os escritores e as máquinas de escrever, que até tinham nomes de gente: Remington, Olivetti ou de deuses, como Hermes, o deus das mensagens. Eram nomeáveis e fiáveis, à medida do nosso desejo. Delas, disse Clarice Lispector que “O ruído baixo do teclado acompanha directamente a solidão de quem escreve”. Talvez por isso, Álvaro Mutis continue, ainda, a escrever na mesma Smith Corona onde inventou Maqrol.

Hoje, os computadores, que têm nomes metálicos, baniram as máquinas de escrever, instaurando uma modalidade de escrita sujeita a margens, barras, menus, ferramentas, conexões, links… que tolhem errância na praia deserta da página, deixando-nos mais sós. Ou talvez não. Para Bragança de Miranda, o seu computador "é uma selva de heterónimos, um drama em máquinas", por isso, estima-o como se fosse a "última máquina". Mas se é verdade que por culpa do computador as máquinas de escrever já quase desapareceram, as ferramentas que são uma espécie de extensão da mão – o lápis e a caneta – resistem, deixando os seus rastos em qualquer folha de papel.


Como Hermann Hesse que escrevia nas costas de folhas de calendário, em facturas, em provas tipográficas, anúncios, sem fazer esboços ou correcções. Ou Novalis que em folhas limpas desenhava belas iniciais como se pretendesse imitar as iluminuras medievais, aventurando-se num romance fragmentário. Ou Hemingway e Bruce Chatwin que escreviam em cadernos moleskine. Ou Robert Walser que escreveu a lápis 526 “microgramas” em folhas separadas: envelopes, margens das folhas dos jornais, formulários oficiais, etc., autênticos labirintos de escrita que levaram vinte anos a ser decifrados e foram recentemente editados em duas mil páginas com o título Território do lápis (para quando a sua edição em Portugal?). Ou Robert Musil cujo fogo da escrita só verdadeiramente incendiava o papel no momento da correcção das provas tipográficas. Ou Jack Kerouac que, num ritmo alucinante alimentado a café e ao som do jazz improvisado, como se fosse um Proust "só que mais rápido", como ele gostava de afirmar, dactilografou Pela Estrada Fora (On the road) num parágrafo único, sem pontuação num rolo de trinta e seis metros de comprimento que o próprio manufacturou juntando 13 folhas de papel com três metros de comprimento cada uma, coladas com fita-cola e recortadas depois para que pudessem entrar na máquina. “Um único e magnífico parágrafo, de vários quarteirões, rodando, como a estrada em si”, disse Allen Ginsberg. Ou Alexander Kluge que escreve, primeiro, num caderno escolar e só depois trancreve para o computador onde redistribui capítulos. Ou António Lobo Antunes que continua a escrever em folhas de prescrição médica do hospital Miguel Bombarda. Ou, numa situação extrema, Vila-Matas que numa viagem de avião, tendo esquecido o diário em casa, transformou o saco higiénico da Ibéria num rascunho de ideias destinadas a uma crónica espasmódica.

 

 

 

Eis como sempre se escreveram os livros, sujeitos às várias modalidades de deambulação pelos territórios do papel, por geografias secretas cujo itinerário o escritor persegue e onde grava com ferramentas pessoais a memória do mundo.


João Ventura - Publicado no blog O leitor sem qualidades

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Segunda-feira, 17.01.11

Os sonhadores

Sonhos


Alberto Manguel


“Vamos de táxi a casa de Bioy e de Silvina, um apartamento espaçoso que proporciona a vista de um parque. Há décadas que Borges passa várias tardes por semana neste apartamento. A comida é horrível (hortaliça cozida e, à sobremesa, algumas colheradas de doce de leite), mas Borges não se dá conta.

 

Esta noite, cada um deles, Bioy, Silvina Ocampo e Borges, conta aos outros os seus sonhos. Com a sua voz àspera e grave, Silvina diz que sonhou que se afogava, mas que o sonho não foi um pesadelo: não houve dor, não teve medo, sentiu simplesmente que estava a dissolver-se, a tornar-se água. Depois Bioy refere que no seu sonho se encontrava diante de duas portas. Sabia, com essa certeza que muitas vezes possuímos em sonhos, que a porta da direita o levaria a um pesadelo; resolveu transpor a da esquerda e teve um sonho sem incidentes.

 

 

 

 

 

Borges observa que ambos os sonhos, o de Silvina e o de Bioy, são em certo sentido idênticos, uma vez que os dois sonhadores esquivaram-se ao pesadelo com êxito, um rendendo-se-lhe, outro negando-se a penetrar nele. Conta a seguir um sonho descrito por Boécio, no século V. Nele, Boécio assiste a uma corrida de cavalos: vê os cavalos, a linha de partida e os diferentes e sucessivos momentos da corrida até que um dos cavalos cruza a meta. Então, Boécio vê um outro sonhador: alguém que o observa a ele, observa os cavalos, a corrida, tudo ao mesmo tempo, num só instante. Para esse sonhador, que é Deus, o resultado da corrida depende dos cavaleiros, mas esse resultado é já conhecido pelo Sonhador. Para Deus, diz Borges, o sonho de Silvina seria ao mesmo tempo agradável e digno de um pesadelo, enquanto, no sonho de Bioy, o protagonista teria atravessado ao mesmo tempo as duas portas. Para esse sonhador colossal, todo o sonho equivale à eternidade, em que estão contidos cada sonho e cada sonhador.


Com Borges, de Alberto Manguel

Imagem: Fotografia de Marcelo Freda Soares

Publicado por José Mário Silva, no blog Bibliotecário de Babel

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Segunda-feira, 27.12.10

A língua e a bolsa

Criar Lusofonia 2011

 

A Direção Geral do Livro e das Bibliotecas (DGLB) de Portugal irá atribuir bolsas para investigação no domínio da escrita para escritores e pesquisadores de língua oficial portuguesa. A bolsa será gerida pelo Centro Nacional de Cultura (CNC) e tem como objetivo a produção de uma obra literária para divulgação nos países lusófonos: Brasil, Angola, Moçambique, Timor, São Tomé e Príncipe, Cabo-Verde e Guiné-Bissau.


A bolsa inclui viagem e estadia num dos países lusófonos durante quatro meses. Pretende-se, assim, aprofundar contactos entre os pesquisadores/escritores e o país de acolhimento de forma divulgar o seu trabalho.


Os candidatos deverão ter obra publicada e divulgada, pelo menos, nos seus países e apresentar um projeto a desenvolver, bem como o motivo pelo qual se candidatam.


O programa Criar Lusofonia foi estabelecido em 1995 e tem por objetivo a atribuição de bolsas no domínio da escrita para estadas em países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).


Na última edição 2009/2011, os contemplados foram: Carlos Alberto Machado, português, com o projeto Mal nascido, a desenvolver em Moçambique, e Alice Goretti Pina, sãotomense, com o projeto No dia de São Lourenço, a desenvolver em São Tomé e Portugal.


O prazo de recepção das candidaturas termina a 19 de fevereiro de 2011.

 

Publicado na Revista Pessoa

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Domingo, 26.12.10

Bacana para aprender

Aprender línguas


Maria do Rosário Pedreira


Quando era professora de Português nos anos 80, zangava-me muito quando os alunos absorviam como esponjas e utilizavam até à náusea palavras e expressões brasileiras – em vez das equivalentes portuguesas – por passarem demasiadas horas a ver telenovelas. Claro que muitas destas expressões eram tão deliciosas e certeiras que era difícil recusá-las («mentira tem perna curta» é obviamente mais redondo e eficaz do que «mais depressa se apanha um mentiroso que um coxo»); mas eu, que passara a infância a ler o Tio Patinhas em traduções feitas no Brasil, com balõezinhos cheios de «grama» (relva), «bala» (rebuçado), «Oba!» e «bacana», nem por isso passara a utilizá-las no meu discurso (suponho que era por não as ouvir, e que isso muda tudo).

 

Preferia, por isso, que os alunos lessem quadradinhos a que vissem telenovelas, até porque a banda desenhada é um excelente veículo de aprendizagem do mundo, ao contrário do que muita gente pensa e diz. Uma vez, em conversa com o Fernando Pinto do Amaral, hoje a dirigir o Plano Nacional de Leitura, chegámos inclusivamente à conclusão de que muito do francês que sabíamos o aprendêramos nos livros maravilhosos do Tintin, do Astérix e de muitas outras BD que, ao tempo, não estavam traduzidas (ou talvez nós nos recusássemos a esperar pela tradução). É pena que hoje, apesar das reedições destes clássicos, muita gente não faça a mais pequena ideia da sua profundidade e ache que são apenas livros para meninos preguiçosos que não gostam de ler...

 

 



Maria do Rosário Pedreira - Publicado no blog Horas Extraordinárias

 

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Quinta-feira, 23.12.10

O aquário ardente

Uma tequila eloquente

 

 


 

 

Confesso que não queria continuar a escrever sobre éteres mexicanos, para não atribuirem à tequila, que raramente consumo, os estímulos espirituosos para as páginas deste diário que aqui vou destilando. E a prová-lo, a circunstância de em cada uma das duas garrafas de Herradura que trouxe do México, restar ainda metade do seu líquido dourado; e do mescal, apenas conhecer aquele que bebi com o «cônsul da embriaguez» em cantinas decadentes debaixo do vulcão. É que nisto das bebidas - que não na literatura -, embora não abstémio, assemelho-me a um sóbrio.

 

Mas uma crónica do escritor mexicano Juan Villoro - também ele um sóbrio, mas só no que respeita a tequilas e outros álcoois - que encontro por acaso na net, convida-me, agora, para uma tequila eloquente. Uma tequila culto cujo nome, El Diablo, propõe o inferno sincero aos paraísos artificiais; e que, no verso do rótulo, para ser lido através da transparência dourada do líquido, como um peixe embriagado num «aquário ardente», oferece um poema de Eduardo Hurtado que nos recorda as irregulares qualidades etéreas da tequila:

 

«El Diablo inventó los sueños/

la lujuria y el tequila,/

al fondo de esta botella/

duermen dourada pasiones y asombros,/

mil años de amor punzante,/

las nubes en las cañadas/

y otras cosas intranquilas».

 

Onde guardar, então, esta garrafa? Na garrafeira ou na livraria?

 

João Ventura - Publicado no blog O leitor sem qualidades

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Terça-feira, 21.12.10

“Não sei nada do México e tenho uma mochila.”

Um espelho de obsidiana


Viva México

Autora: Alexandra Lucas Coelho

Editora: Tinta da China

 

 


 


No verão passado, a jornalista Alexandra Lucas Coelho (ALC), do Público, desembarcou na Cidade do México como quem enfrenta uma página em branco. Três semanas depois estava de regresso à Europa, ao Velho Mundo, com material suficiente para desenvolver os textos publicados no jornal e juntá-los em mais um espantoso livro-reportagem, tão bom como os anteriores Oriente Próximo (2007) e Diário Afegão (2009). Mas se nesses livros ALC abordava realidades que conhecia bem (Israel, Palestina, Afeganistão), neste assumiu logo na primeira frase a sua virgindade: “Não sei nada do México e tenho uma mochila.” O “não sei nada” é relativo. Na mochila levava alguns livros orientadores (Octavio Paz, J.M.G. Le Clézio, o catálogo de uma exposição no Museu Britânico, uma antologia de poesia azteca organizada por José Agostinho Baptista), além de muitos contactos preciosos trazidos de Lisboa. Pouca coisa, ainda assim, para quem chega pela primeira vez a um país vinte vezes maior do que Portugal.

 

Em ano de bicentenário da Independência e centenário da Revolução, com o Campeonato do Mundo de futebol por todo o lado (nas conversas e nos ecrãs gigantes), ALC estava ali para saber que país é aquele, gigantesco e contraditório, agressivo e acolhedor, formoso e horrível, complexo e comovente:"O México dá vontade de chorar, um choro de séculos em que não percebemos porque choramos, se somos nós que choramos, se não seremos nós já eles. Nunca, em lugar algum, me pareceu que tudo coexiste, tempos e espaços, cimento e natureza, homens e animais, até aceitarmos que o nosso próprio corpo faz parte daquela amálgama acre, ligeiramente ácida, de pele suada com muito chile."

 

A viagem começa na Cidade do México, o monstro urbano, a cidade que não acaba. Numa escavação arqueológica, evoca-se o momento fundador em que Cortés subjugou Moctezuma, precipitando o declínio azteca: "Este Novo Mundo começa no extermínio, e isso há-de significar qualquer coisa. No tempo indígena significa que o extermínio histórico faz parte do presente." A violência sente-se no ar, é uma espécie de vibração que tolda a paisagem. Mas a beleza também irrompe quando menos se espera.

 

Uma flor, um céu violeta, cactos na berma da estrada, a Casa Azul de Frida Kahlo em Coyoacán (onde ALC se demora em páginas magníficas). E vejam como a Cidade do México mostra o seu rosto escuro, sujo, cheio de cicatrizes, no «bairro bravo» de Tepito, berço de pugilistas famosos e esconderijo de traficantes, contrabandistas e outros marginais. A repórter também visita museus e livrarias, também conversa com escritores, mas o que lhe interessa é a a pulsação frenética das ruas. E as ruas agradecem, oferecendo-lhe histórias daquelas que não vêm ter connosco (é preciso ir ter com elas). Este é um livro de lugares.

 

 

 

 

 

Depois da capital, entramos de chofre no epicentro da violência associada ao narcotráfico (Ciudad Juárez), escancaram-se as portas do inferno na terra, onde a morte anda à solta e o capitalismo exibe a sua face mais odiosa (paisagens de lixo e pobreza extrema, entre as maquiladoras que alimentam a globalização do baixo custo), descemos depois até paragens mais acolhedoras (Oaxaca), cruzamo-nos com os muxes de Juchitán («A mulher está aqui, o homem está ali, e o muxe está no meio») e com os imigrantes clandestinos de vários países da América Central em trânsito para os EUA (à espera em Ixtepec), trepamos as serras para chegar a San Cristobal de las Casas (no coração de Chiapas, encruzilhada do zapatismo) e fechamos o périplo no Yucatán, a península que é mais do que a pontinha do México em que se amontoam, em resorts todos iguais, os turistas da praia e do bilhete-postal.

 

Os lugares são importantes, mas o que nos fica na memória são as pessoas com as quais ALC se cruza e demora, em longas sessões de platica (a conversa à mexicana, sem pressas). As pessoas que procura e as pessoas que encontra por acaso. Os artistas, os padres, os antropólogos, os conhecidos que indicam outros conhecidos que também conhecem não sei quem, o casal que inventou uma «utopia a dois» no meio da natureza deslumbrante e agreste, um taxista chamado Adolfo ou as raparigas da banda Batallones Femininos, que dizem coisas como esta: «Quando te sentes mal, vomitas e sentes-te melhor. O rap é esse vómito.»

 

Alexandra Lucas Coelho sabe contar histórias, encadeá-las, fazer os saltos de uma para outra no momento certo. A escrita é rápida, muito nítida, às vezes lírica, sempre de uma extraordinária atenção aos detalhes e capaz de maravilhosos achados verbais. Por exemplo, certa mulher de 76 anos «parece uma rapariga que simplesmente envelheceu». E vejam este parágrafo: «Como se os deuses quisessem provar que um museu só volta à vida quando eles decidem, a estação das chuvas está a cair no pátio toda de uma vez. A água desaba em lençóis e acendem-se relâmpagos que depois ribombam. Começa a subir um cheiro intenso a terra. As árvores brilham. As copas agitam-se. O céu ruge. Os turistas correm

 

 

 

 

 

Mais à frente, a obsidiana transforma-se em arte poética: “Afiada, corta. Polida, faz de espelho. Nela se miraram imperadores, perscrutando o futuro. Pode servir para tudo e para nada, só a acumular energia séculos fora.” Se tivesse que resumir numa frase a experiência de ler Viva México, diria que esta é uma prosa que não descreve, ilumina. E assim a viagem de quem narra torna-se, quase sem nos darmos conta, a viagem de quem lê. Sorte a nossa.

 

José Mário Silva - Publicado no blog Bibliotecário de Babel

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Terça-feira, 07.12.10

A paixão do discurso

Llosa versus Foucault


Através de Pedro S. Pereira, da Ohio State University, chegou-me às mãos o texto escrito por Pedro Meira Monteiro, investigador brasileiro a trabalhar nos EUA, sobre uma palestra que Mario Vargas Llosa proferiu na sua universidade (Princeton), poucos dias após a atribuição do Prémio Nobel de Literatura 2010.

 

É um texto instigante, que reage com inteligência ao ataque feito por Llosa a Foucault e ao desconstrucionismo.

 

Aos dois Pedros, agradeço a gentileza do contacto e a permissão para partilhar esta resposta com os leitores do Bibliotecário de Babel:

 

O anti-Foucault

 

Uma das muitas virtudes do pensamento conservador é lembrar, aos que temos a veleidade de afirmar-nos imunes à cantilena da conservação, que o nosso discurso é sempre guiado por fantasmas. De fato, não há voz que se sustente sem espectros. Quando falamos, a potência muitas vezes inconfessável que nos move é aquela que trabalha por materializar, diante de nós mesmos e dos que nos ouvem ou leem, um fantasma.

 

Anteontem, em Princeton, Mario Vargas Llosa, recém-laureado com o Prêmio Nobel de Literatura, proferiu uma palestra intitulada “Breve discurso sobre la cultura”. Em sua fala, o alvo era, sem nenhum pejo ou temor, a figura “sofística” de Michel Foucault.

 

Incomoda profundamente, a Vargas Llosa, que a figura da Autoridade tenha sido profanada pela geração de 68, a qual, iludida, teria feito tábula rasa da “cultura” (que ele cuidadosamente utiliza no singular). Até aí, nada de propriamente surpreendente, já que a postura conservadora do escritor peruano é bastante conhecida. O que me surpreendeu foi ver um módulo do pensamento conservador, que eu tive a oportunidade de estudar em detalhe em outro momento, reaparecer, quase intacto, diante dos meus olhos incrédulos.

 

Quando escrevi sobre o visconde de Cairu – um economista do início do século XIX no Brasil – , flagrei-lhe, em meio ao mais empedernido conservadorismo, algo que então considerei quase genial: a capacidade de apaixonar-se quando expende seus argumentos contra um alvo. A questão é menos simples do que parece: é que um conservador existe siderado pela necessidade de reagir à soltura dos instintos e dos corpos.

 

(Por isso, em geral, o conservador é aquele que sabe, com razoável ou inquebrantável segurança, o que é a “barbárie”.)

 

No caso de Cairu, a soltura dos corpos se revelava plenamente na loucura da massa torpe e ignara (a Revolução Francesa), e nos avanços subsequentes do “dragão corso” (Napoleão Bonaparte) pela Europa. Eis o paradoxo: o autor, que cautelosamente reage aos indivíduos que se deixam tomar pelas paixões, deixa-se ele mesmo tomar pela paixão do discurso, lançando-se aos mais incríveis golpes de efeito poético, comparando, por exemplo, as revoltas provinciais no Brasil imperial a uma “explosão” de vontades mal concertadas, mais perdidas e enfurecidas que “os átomos de Epicuro” soltos no espaço.

 

O velho ranzinza (o frei Caneca chamava-lhe “rabugento sabujo”) deixava-se tomar pelas mesmas paixões que pretendia controlar, e era pela soltura de sua imaginação, e de seus demônios, que vinham à página seus melhores momentos como escritor. O problema é que Cairu nunca foi um bom escritor.

 

Guardadas as diferenças e as proporções (Vargas Llosa é, naturalmente, um bom escritor), o autor peruano tem também o seu dragão, que não é corso, mas é ainda francês. Sua ira mal contida, derramada anteontem contra Foucault, chegou a momentos de incrível ousadia, como quando o espírito “sofístico” do filósofo de maio de 68 é lembrado em paralelo à degradação de seu corpo.

 

É que Foucault, sendo o emblema mesmo da geração de 68, e herói-intelectual daquela aventura tresloucada, entregou-se também aos desvios do corpo e da alma. Foi com pasmo que ouvi Vargas Llosa evocar as famosas e já folclóricas excursões do filósofo francês pelas saunas e bares gay de San Francisco, até o ponto de que sua morte com AIDS (referida também na palestra) ficasse no ar, como uma espécie de justiça poética e maldita, que recai sobre aquele que tragicamente negou o aspecto dissoluto de sua vida moral.

 

Houve outros momentos de pasmo para mim, como quando sua ira se estendeu a toda uma tradição do pensamento crítico no pós-68, e quando, dos teóricos pós-estruturalistas (De Man, Derrida), ouvimos as piores coisas, pelo menos até que, num estranho golpe de misericórdia, se dissesse que o que tal pensamento produziu não é muitas vezes mais que uma inútil e aparatosa “masturbação” (sic).

 

Eu respeito o pensamento conservador, e respeito especialmente aqueles que, como Vargas Llosa, têm a coragem de defendê-lo e de, ao mesmo tempo, sustentar publicamente sua voz, cultivando, ademais, a forma do diálogo. Há, contudo, pelo menos um equívoco grande naquilo que disse anteontem o ganhador do prêmio Nobel deste ano: em dado momento, ele reproduziu a já usada e cansada gracinha de que, diante de um texto de Derrida, nada ou pouco se compreende. Foi aí que pulei da cadeira, e vi meu próprio demônio diante de mim: não é verdade que ele nada tenha compreendido dos textos de Derrida! Que não compreendeu os textos em si, o seu “breve discurso” deixa claro. Mas ele compreendeu – e como conservador, compreendeu perfeitamente – que o gesto de desconfiança em relação ao sentido, que está no coração da aventura desconstrucionista, é o mais perigoso dos gestos, porque comporta a aposta no desejo e a possibilidade mesma do desvio. Mas desvio de quê? Rumo a quê? À cultura? Ou estamos todos perigosamente fugindo da cultura? Cultura de quem? Para quem?

 

Vargas Llosa não crê que, transviados, cheguemos à cultura. Por isso, o seu é o discurso da retenção, da contenção, e do recalque em relação aos poderes dissolventes do corpo, ou do Corpo.

 

É de fato uma enorme questão, que o “Breve discurso sobre la cultura” tem o mérito de trazer de novo à baila. Como acontece com quase todo conservador, o mais importante talvez não seja o que ele propõe, mas sim aquilo de que ele foge.

 

Pedro Meira Monteiro (Princeton University)

 

 

 

 

 

A forma como Llosa terá atacado Foucault, moralizando a partir da conduta sexual do intelectual francês, não deixa de ser estranha, se a analisarmos à luz do seu último romance: O Sonho do Celta. É que um problema semelhante se colocava na abordagem à personagem central do livro, Roger Casement.

 

Homossexual não assumido, Casement vai aparecendo ao longo da narrativa em momentos de entrega aos seus instintos sexuais, umas vezes consumados, outras vezes apenas com a sua fantasia como palco. A importância do comportamento do cônsul (apenas uma das muitas facetas da sua personalidade) prende-se com um dos nós dramáticos da aventurosa história deste irlandês. Condenado à morte por traição, Casement tinha muitos intelectuais do seu lado, assinando petições para um indulto por parte do governo inglês. É então que surgem, publicados nos jornais, supostos fragmentos dos seus diários secretos; os Black Diaries, nos quais o cônsul teria registado, em registo minimalista mas muito gráfico, as suas aventuras eróticas com rapazinhos em África e na Amazónia. O efeito da publicação destes excertos foi devastador, não só para a sua reputação como para o esforço dos seus amigos para o libertarem da forca. Até hoje, os ditos Diários Negros continuam a ser um foco de intensa polémica. Há quem garanta que foram manipulados e truncados (em suma, forjados) pelos serviços secretos ingleses, para desacreditar de vez Casement, e há quem garanta, com testes grafológicos, que os diários são verdadeiros. Em O Sonho do Celta, curiosamente, Llosa assume uma posição intermédia. Fazendo-se valer das prerrogativas romanescas, mostra-nos um homem que regista no seu diário alguns encontros amorosos esporádicos com rapazes novos, sim, mas que imagina todos os outros, nomeadamente os que mais poderiam escandalizar a sociedade puritana do início do século XX. Mais do que a transcrição da sua vida erótica real, os diários seriam o mapa do seu desejo recalcado.

 

Em momento algum o narrador de Llosa deixa entender uma condenação explícita da sua personagem por razões morais. Pelo contrário, parece compreensivo diante do sofrimento e da angústia que aquela existência oculta decerto provocou em Casement.

 

Tendo isto em conta, custa-me efectivamente a entender o violento ataque a Foucault e a baixeza dos argumentos utilizados na conferência de Princeton. Mas, se as coisas se passaram da forma que Pedro Meira Monteiro descreve (e não tenho razões para duvidar da sua palavra), então prova-se mais uma vez que é sempre necessário separar o escritor do homem público que o encarna, porque a pequenez do segundo não deve pôr em causa a grandeza do primeiro.

 

José Mário Silva - Publicado em Bibliotecário de Babel

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Terça-feira, 30.11.10

Numa rua verde

 

 

Numa rua verde

 


Quem mora numa rua verde?

Quem mora assim, no espaço deste espectro?

Quem é que debruça sorrisos na sacada esverdeada?

Esgares em verde-água e, lampejos de olhar em verde-nada?

A rua é incondicionalmente verde.

Substancialmente verde

no meio,

justo,

um!

só!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Publicado em Lisboa, Portugal, por George Sand (blog Chez George Sand)

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publicado por ardotempo às 22:26 | Comentar | Adicionar
Sexta-feira, 12.11.10

DARDOS

Agradecimento pela indicação feita por José Simões

 

 

DARDOS

 

 

 

 

 


"O Prémio Dardos é o reconhecimento dos ideais que cada blogueiro emprega ao transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais, etc.... que, em suma, demonstrem a sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto entre as suas letras e as suas palavras. Estes selos foram criados com a intenção de promover a confraternização entre blogueiros, uma forma de demonstrar o carinho e reconhecimento por um trabalho que agregue valor à Web."

 

E faço a minha indicação de dez nomes/blogs:

 

José Mário Silva - Bibliotecário de Babel

Mariana Ianelli

Luiz Carlos Vaz - Jornalista Vaz

Henrique Chagas - Verdes Trigos

Gilberto Perin

Eric Tenin - Paris Daily Photo

Laure Limongi - Rougelarsenrose

Pedro Gonzaga

João Ventura - O leitor sem qualidades

Roger Lerina

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publicado por ardotempo às 14:52 | Comentar | Adicionar
Quinta-feira, 04.11.10

O Bibliotecário de Babel na Vila Madalena SP

Lançamento na Livraria da Vila - Fradique - São Paulo

 


publicado por ardotempo às 11:35 | Comentar | Ler Comentários (2) | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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