Sem esperança

O almoço

 

António Lobo Antunes

 

Palavra de honra que não estava nada à espera. Primeiro porque aos cinquenta e dois anos não se espera grande coisa, a não ser o médico a informar que um dos rins não está bem, e segundo porque em tantos meses a almoçarmos no mesmo restaurante, cada qual na sua mesa, eu com uma revista e ele com o jornal, nunca dei por qualquer soslaio, qualquer atenção, qualquer interesse da sua parte. Às vezes subia das páginas por causa de uma rapariga, que podia ser minha filha, a comer uma sopa ao balcão, passava-lhe uma luz nos óculos, a luz apagava-se, enfiava o queixo nas notícias, se calhar a aceitar, conformado

 

- Podia ser minha filha

 

pedia a conta antes de mim numa lentidão vencida, não deixava gorjeta que os tempos não estão para generosidades, ia-se embora um pouco gordo, um pouco marreco, de cabeça talvez um bocadinho grande demais para o corpo, via-o lá fora a acender um cigarro, a ingressar na bicha do multibanco, a meter um papelinho na carteira, a sumir-se por fim, lento, pausado, cuidadoso com os semáforos, e perdia-o até ao dia seguinte, em que uma alheira e o diário, ou uma corvina e o diário, ou meia de lulas e o diário, ou um clarãozinho nas dioptrias a propósito de uma sopa e uma rapariga que podia ser nossa filha.

 

Portanto palavra de honra que não estava nada à espera quando hoje entrou no restaurante depois de mim, um pouco gordo, um pouco marreco, de cabeça talvez um bocadinho grande demais para o corpo e, apesar de haver duas ou três mesas sem ninguém, aproximou-se da minha e perguntou-me, numa voz que não ligava com a boca, se me importava que se sentasse à minha frente. De início nem percebi bem. Consegui um

 

- Perdão?

 

atrapalhado, a impedir, no último momento, o copo de água de se entornar porque um dos meus cotovelos, ou uma das minhas mãos, ou a minha revista o tombavam, ele insistiu, na tal voz que não ligava com a boca e eu imaginava cheia, redonda, suave, em lugar de mole, aguda, raspante (mas isso são pormenores, o que interessa é a personalidade e o carácter)

 

- Não se importa que me instale aqui?

 

de maneira que eu

 

- Ora essa

 

a puxar o rectângulo de papel do prato, dos talheres, do guardanapo, de maneira a abrir espaço para o rectângulo dele, repetindo sem dar fé

 

- Ora essa, ora essa

 

de súbito consciente que mal penteada, mal pintada, mal vestida, sapatos rasos, meias cor de carne, pior que meias, collants, soutien cor de carne igualmente, um anelzeco de pacotilha, um colar sem relação com a blusa, brincos minúsculos, a pulseira idiota que uma sobrinha me impingiu, dois terços de baton já no guardanapo, os dentes, a necessitarem de ser limpos, teimando

 

- Ora essa, ora essa

 

enquanto ele estudava a ementa, longíssimo de mim embora ali, enquanto ele para o empregado, de indicador no ar

 

- Chocos

 

quase de costas, com botões de punho que eram bolas de futebol doiradas, se outro homem as usasse horríveis e na sua camisa quase aceitáveis, na sua camisa perfeitamente aceitáveis, ao voltar-se

 

- Aprecia chocos?

 

eu, que detesto chocos, aquelas pernas, aquela tinta, um sorriso encantado

 

- Se forem bem cozinhados

 

a imaginar-me ao fogão a prepará-los, transtornada, só de pensar em tocar naquilo estremeço, chocos e mioleira estremecem-me, rezei para que não prosseguisse o interrogatório alimentar e Deus, na sua infinita bondade, atendeu-me, obrigada, passou dos chocos para a actividade profissional

 

- Sou angariador de seguros

 

e que alívio angariador de seguros, para além de uma alma de filósofo na cabeça talvez um bocadinho (um bocadinho perfeitamente suportável) grande demais para o corpo

   

- Por desgraça não somos eternos

 

e ora aí está uma verdade do tamanho do Himalaia, não somos eternos, o meu pai, por exemplo, com enfisema, sem sair da poltrona, a minha mãe a girar a torneira do oxigénio e a meter-lhe um tubo no nariz

 

- Respira isso um bocadinho

 

com o meu pai continuando roxo, ele, enquanto os chocos não vinham

 

- Nunca pensou numa apólice de doença?

 

ele, enquanto os chocos não vinham

 

- A partir dos cinquenta, e falo por mim, não será má ideia tomar alguns cuidados

 

acompanhado de uma apólice, uma caneta, um bloco e a voz, que não ligava com a boca, não mole, aguda e raspante conforme eu julgava, um latido sinistro

 

- A senhora beira os sessenta, não?

 

de modo que antes de escutá-lo a acrescentar

 

- Eu, se fosse você, andava a pau com a saúde

 

reparei melhor nas bolas de futebol dos botões de punho, achei-as não quase aceitáveis, não perfeitamente aceitáveis, um pavor, como o achei um gordo disforme, um corcunda atroz, um cabeçudo de feira, troquei-o pela revista, não lhe escutei o

 

- Até breve, espero

  

e pedi uma mousse de chocolate a fim de diluir o gosto tenebroso, não bem a chocos, a cinquenta e dois anos sem esperança, que, estou para adivinhar porquê, demorou a tarde inteira até me sair da boca.

 

 

 

 

António Lobo Antunes

publicado por ardotempo às 12:05 | Comentar | Adicionar