A poesia é a palavra

O mágico desconhecimento da vida

 

Paulo José Miranda

 

Contrariamente ao que tenho lido do que se tem escrito acerca de Mariana Ianelli, julgo que o mais importante na sua poesia não é Deus, nem o homem na sua imperfeição, o humano na sua natureza, a Bíblia ou outros tantos textos referenciais. O mais importante na poesia de Mariana é a palavra.

 

Pela boca morre o peixe, pela palavra morre a vida. Pela palavra morre a miséria da vida e nasce a flor viçosa do esplendor humano. A palavra aponta a miséria para superá-la, para sará-la, curá-la. Só a palavra cura a vida, só a poesia cura a realidade. Esta é a poesia, o sentido primeiro da poesia de Mariana Ianelli.

 

Mariana acredita na palavra redentora, contrariamente ao pensador alemão Walter Benjamin. A palavra redentora é a palavra poética. A palavra que começa sem começo. Que acaba sem fim. A palavra que magicamente desconhece a vida. A palavra que está fora da vida e, só por isso, pode fazer a vida apaixonar-se por ela. Pois a vida não se apaixona pelo que ela é, a vida apaixona-se pelo que ela não é, pelo que ela não tem.

 

Mariana faz uma das coisas mais difíceis de serem feitas em poesia: com os materiais da miséria, com os materiais da história humana repleta de atrocidades, constrói um arranha-céus de otimismo. Mas não se pense que otimismo se identifica com lirismo caduco ou com pieguice de polichinelo. Melhor seria dizermos que, para além da beleza dos seus versos, há ainda a desgraça do otimismo. Desgraça bem maior do que o pessimismo é o otimismo. Acreditar na palavra apesar de tudo, contra tudo e contra todos, acreditar na palavra como transformação, como advento, como o que pode e vai salvar o mundo é mais miserável do que não acreditar. Quem acredita na palavra poética como redentora do humano e do mundo sofre mais do que um pessimista.

 

O que dói é acreditar e carregar essa crença nas costas. Não acreditar em nada não dói sequer uma unha. O otimismo, e isso aprende-se nos poemas de Mariana Ianelli, é a maturidade da miséria. Ao invés de acusar a miséria, de lhe pôr as culpas em cima, estes poemas ordenam as misérias com palavras e, neste movimento, acontece o inesperado. Este inesperado é o poema que nos faz ver o que já julgávamos ter visto. O pessimismo é a adolescência da miséria e o otimismo a maturidade da mesma. E quando digo aqui miséria, não falo apenas da miséria humana, mas a miséria de todas as coisas, a miséria do tempo com tudo o que engole. Embora tenha dito atrás que Mariana usa os materiais da miséria e os transforma, não estou com isso a dizer que se trate de uma poética da reciclagem. Uma coisa é fazer uma estátua com o lixo da rua, outra bem diferente é ordenar o lixo da rua e seguir em frente.

 

Assim são os poemas de Mariana. Nem descreve a realidade, nem a recicla. Os poemas de Mariana ordenam a realidade, de modo a caminharmos melhor e seguirmos em frente. Não temos de ter vergonha do lixo, das nossas misérias, as palavras sabem delas melhor do que nós e ao seguirmos as palavras, seguimos em frente, seguimos acima da vida.

 

Há na poética contemporânea muito de reciclagem, mas não é o caso dos poemas de Mariana Ianelli. Aliás, seus poemas destacam-se radicalmente daquilo a que se usa chamar de poesia contemporânea, tanto na forma quanto no conteúdo, como se verá em seguida ao analisarmos de perto um dos seus livros. A poesia de Mariana é uma poesia apocalíptica, uma poesia da revelação, uma poesia ainda por vir.

 

Ora, aquilo que está por vir não é contemporâneo, mas apocalíptico. Há poetas que nos fazem ver que nunca tínhamos visto o que julgávamos saber. É assim com os poemas de Mariana Ianelli. A poesia desta jovem poeta tem a grandiloquência dos mitos, da autoridade do passado e o tom severo e encantatório da elegia.

 

Não é por acaso que seus versos começam todos em maiúsculas, quer sucedam a um ponto final, a uma virgula ou a nada. A poesia de Mariana é feita de versos, é feita verso a verso, como os bichos da seda cerzindo seus casulos. Não fico cego para a existência de uma narrativa nos seus poemas, não. Mas a narrativa é feita verso a verso, e não é com facilidade que saltamos de um verso para outro. Mariana escreve seus versos de modo a que cada um deles seja uma identidade precisa, que nos façam ver a gramática e a semântica que não víamos antes desses versos. Depois, se morre-se ou se continua a viver-se no final do poema importa menos do que os versos que percorremos. E não é assim também na vida?

 

Quem contrariar-me-á aqui que o que menos importa na vida é o seu final, mas os versos que vamos fazendo, que vamos lendo. Quem contrariar-me-á que a vida é verso a verso e não uma correria até ao fim? Assim são os poemas da Mariana.

 

Os poemas de Mariana não falam da vida, não imitam a vida, não a descrevem. Mas a vida não pode deixar de rever-se nos poemas dela. Vejam-se exemplos.

 

No seu livro Passagens, à página 31, escreve: “Eu persisti, Neste início de poema, ainda antes de começarmos, paramos. Paramos por duas razões: pela forma e pelo conteúdo. Paramos porque pela primeira vez estamos a ver o sentido pleno e contraditório deste verbo, persistir, nesta primeira pessoa a dizer o verbo: Eu persisti, ... a virgula obriga-nos, aqui, a parar mais do que qualquer ponto final usualmente nos pára. Eu persisti só poderia ter ou vírgula ou nada, nunca um ponto final, isto compreende-se pelo que falta, pelo que parece faltar à transitividade do verbo. Este verso faz-nos ver que persistir é parar. Persistir, que sempre tomamos por uma ação violenta de continuidade, aqui explode na nossa atenção como sendo o oposto. Eu persisti quer dizer “eu parei”, “eu fiquei”, “eu mantenho-me” “eu estou presente”, “eu sou”, ou como diriam os gregos antigos, “egw andreios eimi”, isto é, “eu sou corajoso”, eu mantenho-me no lugar onde sempre estive.

 

Ou ainda, como ela escreve à página 23 do mesmo livro: “Caiam todos sobre mim: eu subsisto.” Trata-se em poucos versos de um projeto que depois é sustentado verso a verso ao longo do livro. De quem se mantém só repleta de história. Porque sua poesia não rejeita o conhecimento do passado, não rejeita mostrar-se como parte da miséria que assola o mundo desde o início dos tempos.

 

Esta poesia está muito pouco preocupada com inovações formais, isso é assumido de imediato pelos versos iniciados sempre por maiúsculas, mas também há versos que no seu conteúdo nos dizem que é assim que esta poeta pensa, que esta poeta assume seu lugar no corpus poeticus, leia-se o verso à página 79: “Os falsos poetas contemporâneos,”. E, nesse mesmo poema, o primeiro verso diz: “Retorna para o Tártaro,” e, adiante: “E, depois, as Fúrias aprontarão”.

 

Assim Mariana Ianelli assume a temporalidade, assume o mundo como seu objeto poético, e não apenas seu lugar claustrofóbico aqui e agora: “Nós temos em comum este corpo que nos trai.” O corpo é uma prisão, viver no corpo e pelo corpo é recusar a totalidade do mundo, da história, da temporalidade. Viver para além da prisão do corpo é, para Mariana, a única possibilidade de fazer poesia. E, a tudo isto, se liga ainda um artifício muito bem conseguido: a voz desta jovem mulher, desta poeta antiga construindo seu passado, é voz de um homem, a voz masculina. Por que faz ela isto? Veja-se como ela termina um dos seus poemas, à página 55: “De um homem frente ao signo da morte, / Homem que eu jamais seria.” Não se trata de uma imitação da heteronímia de Fernando Pessoa, mas sim de uma impossibilidade de nos aceitarmos, de aceitarmos que “passamos”, que estamos aqui de passagem, que “temos em comum este corpo que nos trai.” E com ele, com esta traição que nos habita, nesta traição que transportamos temos de defender as palavras. Rejeitar a sua própria voz, a voz com a qual responde pela manhã a seu marido ou à tarde à moça da loja, é reconhecer que a vida não tem nada que entrar no poema. A vida não é p’r’aqui chamada. E, neste particular, sim, neste particular tem a ver com Fernando Pessoa. Não enquanto imitação, mas como profundo enraizamento numa estética que recusa que a vida entre poema adentro.

 

Os poemas de Mariana Ianelli têm seus pés fortemente acentos aquém e para além da vida, como podemos ver neste verso: “Com meus dedos engordurados de vida.” É assim que a poeta se vê ao chegar ao poema, ao debruçar-se sobre si mesma, sobre a página, sobre o poema: com os dedos engordurados de vida. Lembramos de imediato o verso final de um grande poema de Álvaro de Campos: “Raios parta a vida e quem lá ande.”

 

Nos poemas de Mariana, há a claridade quase ofuscante da vida não valer nada, da vida não valer senão o que se faz dela, o que se faz com ela. A vida existe para ser ultrapassada. Conhecer a vida é também fazer pouco mais que nada, saber pouco mais que nada, encantar nada. Leia-se outro verso de Mariana: “Com teu mágico desconhecimento da vida”. Desconheça-se a vida para conhecer a magia, a palavra, o mistério. Desconhecer a vida é existir sem engordurar os dedos de vida; é encantar, é ter o poder da magia, o poder das palavras que abrem clareiras, que fazem ver, como se a cegueira fosse antes do poema a nossa única morada.

 

Desconhecer a vida não é desconhecer a palavra. Desconhecer a vida não é desconhecer o que mais importa. Desconhecer a vida é a magia que ainda nos é possível realizar. Mariana sabe que nossa vida vale menos que um poema, menos que um verso. Esta é a sua guerra: contra a ausência de poesia que nos habita. A poesia dela não é pessimista, embora não nos faça rir, nem sequer ficar contentes. A poesia é de outra ordem. Da ordem da beleza, isto é, da ordem do que nos mostra a vida morrendo diante de uma palavra. E isto só pode fazer nós, humanos que vivemos nas palavras, termos um esgar de esperança de que há Deus, o outro ou o nada para nos ouvir e compreender.

 


 

Paulo José Miranda – Escritor e poeta

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publicado por ardotempo às 19:21 | Adicionar