Clamor popular

No Brasil não existe um sistema pleno e escorreito de justiça, há mais um complexo sistema de procedimentos, o que beneficia claramente os detentores de um maior poder econômico, para um natural conforto de advogados e de juízes envolvidos na festa. Isso explica as prisões lotadas de gente desprovida e uma impunidade quase sempre intocável dos abastados, escudada nas piruetas protelatórias dos entendidos nos procedimentos. Tudo custa muito caro mas funciona direitinho para quem joga o jogo e consegue alimentar os protagonistas de nomeada e os portadores dos títulos honoríficos. E assim a vida vai em seu ritmo de samba sincopado.

Até o momento em que a população, que sabe bem disso, percebe que algo insuportável e chocante encaminha-se mais uma vez para a areia movediça dos procedimentos mirabolantes, regada pelo combustível de sempre e com o resultado previsível de sempre. (N.E.)

 

           

 

FERREIRA GULLAR

A inevitável revolta

O assassinato de uma menina por quem deveria protegê-la viola valores fundamentais.

A reação de pessoas do povo revoltadas com o assassinato de Isabella Nardoni, de cinco anos, não foi vista por todos com simpatia. Pelo contrário, houve quem visse nela um atentado aos direitos do pai e da mãe da menina, uma afronta ao princípio legal, segundo o qual todo mundo é inocente até que se lhe prove a culpa. Temia-se, com razão, o linchamento moral -e até mesmo físico- de Alexandre e Anna Carolina.


 

Minha disposição, desde o início, foi concordar com esses temores, mesmo porque está fora de discussão que, do ponto de vista legal e moral, ninguém deve ser condenado sem culpa formada. Mas resolvi ampliar a reflexão, para abranger outros momentos em que a opinião pública se defrontou, não com o homicídio de uma pessoa qualquer e, sim, com a apropriação de dinheiro público ou com o uso dele em benefício próprio, como foi o caso do ex-reitor da Universidade de Brasília.


 

Não me lembro, na ocasião, de ter lido ou ouvido, nos jornais e na televisão, críticas à atitude dos estudantes que ocuparam a universidade para exigir a demissão do reitor corrupto, que, aliás, já deixou o cargo.


 

Houve um processo administrativo que concluíra pela culpabilidade do reitor? A sua responsabilidade, nos gastos abusivos, que provocaram o escândalo, foi apurada, resultando numa condenação legal?

 

Não, pelo menos que eu saiba. Não obstante, parece ter havido, na sociedade, uma espécie de consenso quanto ao direito dos estudantes de exigirem a sua expulsão, a par de uma tácita aceitação de seu afastamento das funções que exercia.
 Por que isso? Seria porque se tratava de um problema institucional, e os estudantes, como parte da instituição universitária, teriam naturalmente o direito de exigir a punição do reitor, enquanto, no caso de Isabella, quem protestava era gente anônima do povo?

 

Ou, dizendo de outro modo, a morte da menina, por abalar emocionalmente a sociedade, poderia provocar reações incontroláveis, sendo por isso melhor deixar a questão sob a responsabilidade exclusiva das autoridades constituídas. Seria isso?


 

De qualquer modo, o ponto ressaltado pelos que se opuseram aos protestos de rua, no caso de Isabella, era o perigo de se estar acusando pessoas inocentes, podendo com isso causar-lhes um prejuízo moral irreversível. Seria o mesmo caso do reitor. Esse deveria ser um temor razoável, nos dois casos, mas tampouco a revolta das pessoas que passaram a exigir a punição de Alexandre e Anna Carolina era gratuita ou insensata. Pelo contrário, ela nasceu das versões que os próprios acusados deram do que ocorrera naquela noite, e essa versão era totalmente implausível. Eu mesmo não acreditei nela.

 

A afirmação do pai de que, ao chegarem à garagem do prédio, ele subira com Isabella e deixara Anna Carolina com os dois filhos para vir buscá-los depois, é inaceitável. Por acaso no elevador não caberiam dois adultos e três crianças, todos cansados de um passeio que durara a tarde inteira e a noite?

 

Essa versão só servia para justificar ter ele deixado Isabella sozinha no apartamento, quando teria sido então assassinada e jogada pela janela, por um desconhecido. Todo mundo percebeu isso, e os demais detalhes só vinham fortalecer a suspeita de que Alexandre e Anna Carolina estavam diretamente envolvidos na morte da menina.

 

Por que um ladrão (que nada roubou e atravessou as paredes como um fantasma), depois de esganar Isabella, a jogaria pela janela? Para chamar a atenção dos vizinhos?

 

Quem necessitava se livrar do corpo eram os dois moradores do apartamento, que não teriam como explicar a morte da garota, ferida na testa e com marcas de estrangulamento. Esses e outros dados são suficientes para fazer do pai e da madrasta os possíveis homicidas.

 

A revolta das pessoas fundava-se em evidências e não em suposições implausíveis.
 É certo que, até então, nada estava provado nem se justificaria, em qualquer hipótese, fazer justiça pelas próprias mãos e que, entre os manifestantes, há sempre os meramente curiosos e os oportunistas. 
Leve-se em conta, porém, que as pessoas têm o direito de fazer sua própria avaliação dos fatos e, a partir dela, assumir a atitude que lhes pareça correta. Como não dispõem do poder legal da polícia e dos instrumentos judiciais nem dos veículos de comunicação para manifestar-se, vão para as ruas.

 

A verdade é que o assassinato de uma menina de cinco anos por aqueles que deveriam protegê-la viola valores fundamentais do convívio social e provoca revolta e indignação, particularmente quando não se confia no rigor da Justiça.


 

© Ferreira Gullar - Publicado pela Folha de São Paulo - UOL
 

publicado por ardotempo às 03:02 | Comentar | Adicionar