O rosto limpo

Como se chegasse a nossa hora vespertina

 

Mariana Ianelli

 

É um momento de raro equilíbrio, quando não esbanjamos mais tantas oportunidades e ainda não temos as mãos vazias. Os caminhos continuam abertos, mas alguma história já foi escrita e essa história nos acautela, pesamos o risco de estradas desconhecidas. Não temos muito nem pouco tempo, temos tempo suficiente. O corpo fica mais lento, experimenta a noção de volúpia, é um corpo que se perdoa por não ser mais tão cheio de energia.

 

É um momento de trégua de velhas disputas, a esperança volta, sem ingenuidade, agora um sentimento novo, cruento, difícil. Podemos ficar sentados à mesa entretidos com um pensamento por horas e horas, como um enxadrista. Exploramos pequenos prazeres, nossa fluência na língua dos gestos, aos poucos vamos nos tornando mestres na arte de falar em silêncio. Conhecemos bem aquela sala penumbrosa, com cheiro nauseante de gérberas e lírios, candelabros nos quatro cantos, estivemos ali muitas vezes, com a nossa cara compungida. Ficamos atentos aos indícios. 

 

Deitamos no escuro e conversamos conosco, vem a centelha, a grande solução, depois caímos no sono e esquecemos tudo. Já blasfemamos, arremetemos, amealhamos alguns desafetos, pecamos por ingratidão, chegamos ao excelente desempenho do nosso ódio. Agora queremos um pouco de delicadeza, ter a quem confiar a nossa parte humana dada à embriaguez e ao desastre. Sabemos melhor e mais fundo quais os nossos pontos fracos, aprendemos a rir das nossas rabugices, a nos reconhecer na dor alheia quando colocamos os nossos olhos nos olhos de um outro e o que vemos é dança involuntária e cor de bronze de lacraia torturada pelo fogo.

 

É como se chegasse a nossa hora vespertina, um ritmo moderado de meio de expediente, um sentido de geração parecido a uma vaga sensação de desperdício, o pressentimento de uma fábula moderna do incêndio de muitas outras bibliotecas alexandrinas, mas, na aritmética de desencantos e alegrias, provando do livrinho da vida, sentimos ainda um gosto doce, nosso saldo ainda é positivo. Daqui para amanhã é cuidar para que não nos aconteça aquele “sabor de promessa falhada” de um dos mais belos e tristes poemas de Mario de Andrade. Cuidar que seja um rosto limpo, sem rancor e sem vexame, o rosto que vier, oráculo do nosso passado.

 

 

 

Mariana Ianelli - Publicado em Pernambuco - Diário Oficial do Estado

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