A voz plástica

Publicado no Da Literatura

 

Resenha literária por João Paulo Sousa

 

O primeiro mérito de Carassotaque, novela que Alfredo Aquino publicou no ano transacto, depois de, em 2007, se ter estreado na ficção com o volume de contos A Fenda, é o de construir uma história sólida do ponto de vista da verosimilhança interna, apesar da dimensão aparentemente fantástica da situação que determina a narrativa.

 
Com a acção localizada num país imaginário, cujos habitantes não conseguem ver o rosto uns dos outros (embora essa ausência facial não seja perceptível para os estrangeiros, razão pela qual são designados pela palavra composta que serve de título à obra), a primeira narrativa longa de Alfredo Aquino, editada pela Iluminuras, apresenta-se como uma utopia em construção, como um projecto aberto, em relação ao qual são dadas várias pistas. Antes de mais, o nome do país imaginário, Austral-Fênix, parece especialmente adequado a um espaço onde se pretenda renascer (e este verbo deve ser lido aqui numa dupla perspectiva, de carácter simultaneamente existencial e social).
 
Com efeito, é da tensão relacional entre cada indivíduo e os outros que nos fala o livro, pois a invisibilidade das cabeças tem origem no medo colectivo, induzido, primeiro, por uma ditadura e, depois, por um regime marcado pela corrupção. Cabe ao protagonista desmontar a rede de temor através de fotografias que, pela primeira vez, irão captar a invisibilidade dos rostos dos austral-fenecianos e mostrá-la ao resto do mundo. Assim, a personagem principal chama-se Celan Gacilly, isto é, metade do seu nome vem do poeta de língua alemã que escreveu a célebre Todesfuge e a outra metade coincide com a designação de uma comuna francesa, da Bretanha, conhecida, entre outros motivos, pelo festival anual de fotografia, dedicado à ligação entre os povos e a natureza.
 
O protagonista carrega, portanto, uma transcendência que, de algum modo, perturba a sua assunção como figura individual; embora compreenda a herança ética de que ele, assim, se torna devedor, parece-me excessivo o peso que recai sobre o herói, exigindo-lhe, em demasia, uma atitude exemplar. Como Celan Gacilly cumpre essa solicitação, é a outra personagem, ao seu amigo Antônio Rufino Andorinha, que o leitor ficará a dever a complexidade e o dilema inerentes ao combate contra o medo, rasgando, em alguns momentos, as sequências planas da narrativa.
 
Um exemplo a considerar é a cena em que Antônio se vê atacado por dois cães ferozes; representativa, em parte, da escrita plasticamente expressiva de Alfredo Aquino, esta cena pode ajudar-nos a compreender em que medida, para lá dos mecanismos diegéticos de cariz alegórico, é à nossa condução por esta voz narrativa que se deve o prazer da leitura de Carassotaque:
 
"Os dois pitt bulls arrojaram-se num salto voador como dois torpedos aéreos, um quase ao lado do outro, marrons, as bocas dilacerantes abertas, espargindo as babas, as presas brancas faiscando no menear brutal das mandíbulas em direcção ao rosto e ao pescoço de Antônio, que ainda conseguira, com muita sorte e agilidade, evitar o choque das bestas, e jogar-se para dentro do carro, puxando com violência a porta e conseguindo encerrar-se dentro do veículo. Aterrorizado, travou as portas e ficou caído sobre os bancos, enquanto ouvia um estrondo na porta, os rosnados selvagens e o barulho das garras dos cães, riscando e agredindo a lataria" (pp. 101-102).
 
 

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ARdoTEmpo: Agradeço o tempo valioso dispendido na leitura, acurada e muito atenta, esplendidamente erudita e livre no vôo da imaginação e do prazer; e na consequente ourivesaria da letra de sua compreensão e na sugestão à leitura de Carassotaque.

Muito obrigado, João Paulo Sousa e Da Literatura. - De Alfredo Aquino

publicado por ardotempo às 02:43 | Comentar | Adicionar