Domingo, 04.12.11

O doce cotidiano das cidades

 

 

 

Cristaizinhos de gentileza

 

Taciane Corrêa, de Paris (França)

 

 

Durante esta semana meus pensamentos ficaram açucarados

 

Repletos de creme, de chantilly e de um toque de caramelo

 

Porque descobri que as pessoas que gostam de doce são mais amáveis e gentis

 

E porque o salão nobre da prefeitura de Pelotas se recheou de doce para comemorar

 

Assim, resolvi transformar minha semana gélida em um doce momento

 

Aproveitando para visitar e descobri novos sabores


Em Paris, não caminhamos por quadras e sim por minutos

 

Então... A cada três minutos uma pausa para sentir, observar, degustar e se deliciar com os peculiares aromas

 

Na quadra que não tem uma pâtisserie, tem uma maison du chocolat ou uma colorida banquinha repleta de guloseimas.  Após ler a pesquisa que foi realizada nos Estados Unidos, na qual afirma que as pessoas que comem doces são mais queridas, prestativas e simpáticas

 

Saí para flanar feliz e sem culpa

 

Pelos doces da moda e pelas centenárias histórias dos clássicos franceses

 

Encontrei milhares de nuances sucrés.  O colorido exótico dos macarons.  O aroma estonteante das boutiques de chocolate.  As curiosas origens de doces do século passado.

 

Os pedidos de Napoleão que são como bálsamos de alegria.  O relâmpago estouro marcante da éclair.  Criada por volta de 1800 assume, hoje, criativas versões

 

Neste momento para acessar minhas lembranças gastronômicas da infância me delicio com Paris-Brest, um doce circular, leve e fluido

 

Exatamente como a roda de uma vélo

 

Mas o que é mesmo que uma bicicleta tem a ver com a história? Inicialmente nada, até a atendente da pâtisserie começar a me explicar que o doce foi criado em 1891 para homenagear uma corrida de bicicleta Paris-Brest-Paris.  Por aqui tudo é possível!!!

 

Alguns grandes e renomados profissionais são chamados de Picassos da pâtisserie

 

O design de alguns doces foi criado por estilistas.   Sim, aqueles profissionais da moda... Até o brasileiro Alexandre Herchcovitch andou fazendo arte por aqui

 

Nossa sorte é que os reis também gostavam do sabor doce da vida.  No reinado de Luís XIV foi realizado um profundo trabalho para melhorar o sabor das frutas.   Que logo passam a fazer parte do mundo das sobremesas.  São borbulhas frutadas que refinam nosso paladar

 

Por aqui, a criação da tarte tatin na transição do século 19, pelas irmãs que viraram a torta de maçã de pernas para o ar

 

Por aí, os doces cristalizados e as compotas. Uma influência dos franceses Por aqui, os doces familiares feitos de cereja, clafoutis e de outras frutas, flaugnarde

 

Por aí, chimias, geleias e doces em pasta

 

Os doces são peças importantes da gastronomia da França

 

E também são tratados com deferência por aqui Inclusive alguns se diz ser o segredo da eterna juventude, com 126 anos de vida O Crème de Marrons cruza o tempo com o autêntico sabor da castanha de l'Ardèche

 

Agora de posse do Selo de Indicação de Procedência será possível proteger a identidade do doce pelotense

 

A tradição doceira de Pelotas é legítima e garantida

 

Aproveite a Capital Nacional de Doce para flanar e se perder em seus espirais adocicados

 

Flutue com um pastel de Santa Clara

 

Amarre-se com um bem-casado

 

Inspire-se com o camafeu

 

Brinque com um brigadeiro

 

Enrole-se em um ninho

 

Deixe os cristais de gentileza tomarem conta do seu dia a dia.

 

 

 


 

Taciane Corrêa - Publicado no Diário Popular - Pelotas  

 

 Imagem: Fotografia de Edison Vara

publicado por ardotempo às 17:07 | Comentar | Adicionar

Sem esperança

O almoço

 

António Lobo Antunes

 

Palavra de honra que não estava nada à espera. Primeiro porque aos cinquenta e dois anos não se espera grande coisa, a não ser o médico a informar que um dos rins não está bem, e segundo porque em tantos meses a almoçarmos no mesmo restaurante, cada qual na sua mesa, eu com uma revista e ele com o jornal, nunca dei por qualquer soslaio, qualquer atenção, qualquer interesse da sua parte. Às vezes subia das páginas por causa de uma rapariga, que podia ser minha filha, a comer uma sopa ao balcão, passava-lhe uma luz nos óculos, a luz apagava-se, enfiava o queixo nas notícias, se calhar a aceitar, conformado

 

- Podia ser minha filha

 

pedia a conta antes de mim numa lentidão vencida, não deixava gorjeta que os tempos não estão para generosidades, ia-se embora um pouco gordo, um pouco marreco, de cabeça talvez um bocadinho grande demais para o corpo, via-o lá fora a acender um cigarro, a ingressar na bicha do multibanco, a meter um papelinho na carteira, a sumir-se por fim, lento, pausado, cuidadoso com os semáforos, e perdia-o até ao dia seguinte, em que uma alheira e o diário, ou uma corvina e o diário, ou meia de lulas e o diário, ou um clarãozinho nas dioptrias a propósito de uma sopa e uma rapariga que podia ser nossa filha.

 

Portanto palavra de honra que não estava nada à espera quando hoje entrou no restaurante depois de mim, um pouco gordo, um pouco marreco, de cabeça talvez um bocadinho grande demais para o corpo e, apesar de haver duas ou três mesas sem ninguém, aproximou-se da minha e perguntou-me, numa voz que não ligava com a boca, se me importava que se sentasse à minha frente. De início nem percebi bem. Consegui um

 

- Perdão?

 

atrapalhado, a impedir, no último momento, o copo de água de se entornar porque um dos meus cotovelos, ou uma das minhas mãos, ou a minha revista o tombavam, ele insistiu, na tal voz que não ligava com a boca e eu imaginava cheia, redonda, suave, em lugar de mole, aguda, raspante (mas isso são pormenores, o que interessa é a personalidade e o carácter)

 

- Não se importa que me instale aqui?

 

de maneira que eu

 

- Ora essa

 

a puxar o rectângulo de papel do prato, dos talheres, do guardanapo, de maneira a abrir espaço para o rectângulo dele, repetindo sem dar fé

 

- Ora essa, ora essa

 

de súbito consciente que mal penteada, mal pintada, mal vestida, sapatos rasos, meias cor de carne, pior que meias, collants, soutien cor de carne igualmente, um anelzeco de pacotilha, um colar sem relação com a blusa, brincos minúsculos, a pulseira idiota que uma sobrinha me impingiu, dois terços de baton já no guardanapo, os dentes, a necessitarem de ser limpos, teimando

 

- Ora essa, ora essa

 

enquanto ele estudava a ementa, longíssimo de mim embora ali, enquanto ele para o empregado, de indicador no ar

 

- Chocos

 

quase de costas, com botões de punho que eram bolas de futebol doiradas, se outro homem as usasse horríveis e na sua camisa quase aceitáveis, na sua camisa perfeitamente aceitáveis, ao voltar-se

 

- Aprecia chocos?

 

eu, que detesto chocos, aquelas pernas, aquela tinta, um sorriso encantado

 

- Se forem bem cozinhados

 

a imaginar-me ao fogão a prepará-los, transtornada, só de pensar em tocar naquilo estremeço, chocos e mioleira estremecem-me, rezei para que não prosseguisse o interrogatório alimentar e Deus, na sua infinita bondade, atendeu-me, obrigada, passou dos chocos para a actividade profissional

 

- Sou angariador de seguros

 

e que alívio angariador de seguros, para além de uma alma de filósofo na cabeça talvez um bocadinho (um bocadinho perfeitamente suportável) grande demais para o corpo

   

- Por desgraça não somos eternos

 

e ora aí está uma verdade do tamanho do Himalaia, não somos eternos, o meu pai, por exemplo, com enfisema, sem sair da poltrona, a minha mãe a girar a torneira do oxigénio e a meter-lhe um tubo no nariz

 

- Respira isso um bocadinho

 

com o meu pai continuando roxo, ele, enquanto os chocos não vinham

 

- Nunca pensou numa apólice de doença?

 

ele, enquanto os chocos não vinham

 

- A partir dos cinquenta, e falo por mim, não será má ideia tomar alguns cuidados

 

acompanhado de uma apólice, uma caneta, um bloco e a voz, que não ligava com a boca, não mole, aguda e raspante conforme eu julgava, um latido sinistro

 

- A senhora beira os sessenta, não?

 

de modo que antes de escutá-lo a acrescentar

 

- Eu, se fosse você, andava a pau com a saúde

 

reparei melhor nas bolas de futebol dos botões de punho, achei-as não quase aceitáveis, não perfeitamente aceitáveis, um pavor, como o achei um gordo disforme, um corcunda atroz, um cabeçudo de feira, troquei-o pela revista, não lhe escutei o

 

- Até breve, espero

  

e pedi uma mousse de chocolate a fim de diluir o gosto tenebroso, não bem a chocos, a cinquenta e dois anos sem esperança, que, estou para adivinhar porquê, demorou a tarde inteira até me sair da boca.

 

 

 

 

António Lobo Antunes

publicado por ardotempo às 12:05 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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