Domingo, 25.10.09

Poema (Mariana Ianelli / Inédito)

Vibrações
 
  
O prazer que te dão as chuvas
Porque derrubam sem chance de luta
As árvores centenárias, os muros, 
Um templo com sua esfarrapada figura,
Um pouco é sonho, um pouco insulto
Da tua resistência ao rés do absurdo
Viver quarenta noites no dilúvio
Atado a uma cama, o corpo no escuro
Ao abrigo de uma mente lúcida.
 
O que ainda vibra nesse homem
Se ele nada mais quer, nada pode,
- Demasiada realidade exposta -
Como aceitar que no sono suporte
O lodo se intrometendo pelas bordas,
Perguntam por dentro os que estão à tua volta
E não veem a enguia se movendo,
Se esquivando, ludibriando o tempo, 

Quinze côvados abaixo das tuas pálpebras.

 

 

 

 

 

 

© Mariana Ianelli - Iluminuras, 2009

Imagem: Páteo dos Leões - Alhambra, Granada  (Espanha)

publicado por ardotempo às 13:14 | Comentar | Adicionar

Aqui e ali, em todo lugar

Falemos de Deus
 
Contra as ressonâncias bíblicas que se ouvem por aí a propósito do livro de Saramago, outra forma de abordar «o teorema perfeito e terrível» de Deus.
 
Raramente falamos de Deus. E quando a ele nos referimos preferimos a metáfora, como se tudo o resto se descolasse do seu nome. E ainda menos falamos dessa questão «menor» de acreditar ou não acreditar em Deus, preferindo cruzar os braços contra a crença profunda em que nascemos. A verdade é que herdámos Deus mesmo antes de termos conhecido «as suas casas profundas». Na infância, Deus é, como escreveu Soares dos Passos, «aquele que povoa a imensidade». Depois, à medida que nos vamos adentrando no mundo, verificamos que caminhamos mais sós do que desejávamos. Por isso transformamos as perguntas nas respostas que procuramos, enquanto aguardamos pelo teorema da existência de Deus. E deixamo-nos arrastar pelo medo que cobre um mundo onde se apagaram as imagens que o paraíso já não devolve depois da «morte do criador» anunciada por Nietzsche. E desde aí, vivemos no medo de termos ficado órfãos para sempre, como se escrevêssemos um novo e desesperado Livro de Job.
 
 
Há quem explique esta angústia como um «erro genético» que a todos afecta. Porque todos, crentes e agnósticos, estamos inelutavelmente comprometidos com a dúvida original, oscilando entre um ascetismo puro e uma transcendência luminosa. Talvez, por isso, uns e outros, em qualquer momento das nossas vidas, já tenhamos sentido a falta de Deus. E outras vezes escutado os seus passos, os restos da sua voz no nevoeiro que cobre o mundo. E isso apazigua o medo. E, depois, estranhos de passagem, continuamos o caminho, cépticos ainda, mas com menos frio no coração. Mas será essa estranheza algo que devemos ocultar? Ou, como diz Henry James, «é preciso acreditar na dúvida, porque é isso que faz a grandeza do homem».
 
Diante da dúvida, que futuro, então, para Deus, num mundo que, ao mesmo tempo que vai perdendo o seu sentido ético, assiste à «instrumentalização política da religião», traduzida nos múltiplos fundamentalismos religiosos que enlouquecem os homens. «Talvez [como escreveu Enrique Vila-Matas] as ideias casuais de tanta gente incerta [...], as inquietações de cada um, dos vivos e dos mortos. Talvez algum dia com fluido abstracto e impossível substancia, formem um Deus ou um tecido novo e com a luz de outra vida ocupem o mundo».
 
Entretanto, «nas suas casas profundas Deus aguarda que se demonstre/ o teorema perfeito/ e terrível» [Herberto Helder, Última Ciência].
 
João Ventura - Publicado no blog O leitor sem qualidades

Imagem: Rene Magritte - Perspectiva I - Madame Recamier / Releitura da obra de David - Pintura - Óleo sobre tela 

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publicado por ardotempo às 12:37 | Comentar | Adicionar

Engano, fuso horário ou dar conta do recado?

Beleza não põe mesa
 
Ferreira Gullar
 
Nós, virginianos, analíticos por fatalidade zodiacal, tendemos a corrigir os exageros ou equívocos que o entusiasmo provoca. Assim é que, passada a justa euforia que nos tomou ao ser anunciada a escolha do Rio para sediar a Olimpíada de 2016, é justo tentar entender o que realmente aconteceu. Se isso servirá para alguma coisa, não sei, mas sei que ver claro os fatos não faz mal a ninguém, a não ser aos que se beneficiam do engano.
 
A pergunta que me faço é, e procuro responder, a seguinte: o que determinou a escolha do Rio de Janeiro pelo Comitê Olímpico Internacional, em vez de Chicago, Tóquio ou Madri? Há quem diga que foi o excelente trabalho de marketing feito pelo Comitê Olímpico Brasileiro, enquanto para outros o fato decisivo foi a presença em Copenhague do presidente Lula.
 
Chegou-se mesmo a afirmar que Obama, derrotado por ele, teria voltado para casa de cabeça baixa. Para esses, a escolha do Rio veio confirmar, segundo as palavras de nosso presidente, que enfim o Brasil tem coragem de encarar de igual para igual as nações tidas como avançadas. Com esta vitória no Comitê Olímpico Internacional, chegamos enfim ao Primeiro Mundo!
 
Confesso que tais afirmações me deixam constrangido, pois, na verdade, indicam que continuamos amargando o complexo de vira-latas, preocupados, a todo instante, em mostrar que não somos cachorros, não. E é claro que não o somos, mesmo sem Olimpíada.
 
Não há nenhuma lógica em afirmar por que a escolha do Rio para sediar os Jogos Olímpicos nos põe de repente no Primeiro Mundo. O México os sediou, em 1968, e nem por isso entrou para essa categoria. Tampouco a Grécia (três vezes) e a Coreia do Sul, em 1988. Na verdade, não vale a pena perder tempo com semelhante discussão.
 
Destituído igualmente de propósito é dizer que a escolha do Rio pelo COI deveu-se a Lula que, pelo visto, faz chover quando quer. Basta lembrar que ele já era presidente quando o Rio foi descartado, em primeiro escrutínio, na disputa pela Olimpíada de 2012. É uma tolice superestimar a influência de chefes de Estado, tanto que Chicago, apoiado por Obama e Madri, pelo rei Juan Carlos da Espanha, perderam. Ganhou o Rio porque Lula é mais influente que os dois? Acho que nem ele, em sua inquestionável megalomania, acredita nisso.
 
Os fatos indicam o contrário: se Obama e o rei Juan Carlos não conseguiram a escolha de Chicago e Madri, é que os fatores decisivos eram outros e não o maior ou menor prestígio de qualquer deles. O que decidiu, como está evidente, foram os interesses do próprio COI e de seus dirigentes. É, portanto, fora de propósito achar que o Comitê Olímpico Internacional iria pôr em risco o êxito dos Jogos e arrostar com as consequências disso, apenas para agradar a governantes, seja ele Obama, Lula ou o rei da Espanha. Numa decisão como essa, estão em jogo desde o relacionamento do COI com a opinião pública das diferentes nações e continentes até - e sobretudo - interesses econômicos, envolvendo o prestígio de grandes empresas patrocinadoras do certame.
 
É, desse modo, mais fácil de entender a exclusão da cidade de Chicago, já que boa parte de sua população não a queria como sede e, por outro lado, o seu fuso horário que obrigaria os Jogos a serem vistos na Europa tarde da noite e pela madrugada a dentro. A questão do fuso também pesou, ainda que menos, na exclusão de Tóquio, somando-se ao fato de que já três Olimpíadas se realizaram na Ásia, a última delas em Pequim, recentemente.
 
E Madri? Por que não Madri, que se apresentou com a infraestrutura pronta, enquanto o Rio estava longe disso? A exclusão de Madri teve duas razões: a Espanha já ter sediado a Olimpíada em Barcelona e, sobretudo, o interesse da França, Alemanha e Itália em sediá-la em 2020. A escolha da Espanha em 2016 tornaria essa pretensão inviável.
 
Restava o Rio de Janeiro, que, não tendo o problema do fuso horário e, por essa razão, atende melhor ao interesse das grandes empresas, patrocinadoras dos Jogos. Não foi porque o Rio de Janeiro continua lindo e a economia estável. Isso conta, claro, mas não decide, como não decidiu nas duas vezes anteriores em que ele se candidatou e perdeu. E, aliás, tinha ainda contra si, o grave problema da segurança, que é grave, sem dúvida. O Rio foi escolhido porque, das 26 Olimpíadas realizadas, 15 foram na Europa, seis na América do Norte, três na Ásia, duas na Austrália e nenhuma na América do Sul. Por exclusão, vencemos. Importante agora é mostrar ao mundo que podemos dar conta do recado.
 
 
 
 
© Ferreira Gullar
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publicado por ardotempo às 11:54 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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